10 fevereiro 2010

Vai um gin do Peter's?

Vi, há dias, o imperdível "INVICTUS" (Invencível), do talentoso realizador, Clint Eastwood, cujo epicentro é a figura maior de Nelson Mandela -- e só isso vale o filme!

Clint esquiva-se, habilmente, à tentação de biografar, tout court, uma personalidade ímpar, concentrando-se antes no maior legado que Mandela quis deixar ao seu país, desde o minuto zero do seu mandato como Presidente da África do Sul (1994): desfazer as quase intransponíveis barreiras do apartheid, sulcadas em zonas remotas do coração, superar os inúmeros traumas étnicos para unir, pacificar a «rain-bow nation», na expressão muito positiva do Nobel da Paz (em 1993, com Frederik de Klerk)!

De INVICTUS -- título do poema (*) que sustentou Mandela durante os longos 27 anos de cativeiro, escrito 100 anos antes por outro resistente -- mantenho a surpresa do enredo, para quem não tenha ainda visto o filme, apenas partilhando convosco impressões fantásticas, que a obra de Clint nos transmite...

Antes de mais, lembro os excertos significativos do poema, declamado pela voz poderosa do protagonista, com a autoridade da própria vida, como gostava de reivindicar Evita Perón. E fica-nos bem claro que lhe assiste a autoridade de quem perdoou, do fundo da alma, aos seus cruéis algozes, convertendo-se em testemunho vivo de que o caminho da reconciliação é possível, apesar de tudo, e é a única via que abre para a vida, para o futuro: «Out of the night that covers me, / (...) I thank whatever gods may be / For my unconquerable soul. / (...) I am the master of my fate: / I am the captain of my soul.»! Isto dito, ou antes, isto rezado por um condenado incrivelmente aberto aos outros, nada individualista, permitiu-lhe rasgar um horizonte de magnanimidade, sem limites, que o aproximou de todos os homens, a começar pelos carcereiros!

Impressionou-me também -- aliás, impressionou a maioria dos que privaram com ele -- a atenção personalizada, muito humana, dedicada a cada pessoa com quem se cruzava, fixando-lhe o nome, interessando-se pela sua vida, solidarizando-se com os seus problemas. Os pequenos equívocos criados pela invulgaridade desta atitude, que colhia quase todos de surpresa, resultam na melhor marca de autenticidade dos seus gestos, muito populares, mas nada populistas!

E talvez de tudo o que mais me tenha tocado seja a confirmação da criatividade imparável do Bem, que jorra no dia-a-dia de Mandela com a pujança luminosa da gigantesca queda de água Victoria Falls ! E tanto mais espantosa quanto os factos históricos o certificam! Foi giríssimo (não, não vou quebrar o suspense...) Mandela ter estudado, ao pormenor, a forma de convocar o seu povo para a era pós-apartheid, inundando-o, autenticamente, com uma cascata de boas acções, das pequenas às grandes, de impacto incalculável!

Disse que Clint não se tinha detido na biografia de Mandela... mas tenho de explicar que nem precisou, porque os 2 anos de vida fixados na tela denunciam, explicitam mesmo, um passado de heroísmo e sabedoria, conquistados a pulso! Nunca um Homem daquela estatura poderia ter emergido do nada! De facto, o filme é apenas, ao de leve, pontuado por pequenos sinais do passado, eloquentes e sóbrios, como é apanágio de um realizador que não cede a sentimentalismos.

A acabar esta crónica inaugural, passo a palavra ao poeta, repetindo com Mandela: «I thank whatever Gods may be / For my unconquerable soul. /... It matters not how strait the gate, /... I am the master of my fate / I am the captain of my soul».

Maria Zarco
_______________________

(*) Composto em 1875 pelo vitoriano William Ernest Henley (1849-1903), no seu quarto de hospital, a recuperar de uma tuberculose óssea bem feroz, que se saldou na amputação de uma perna. O poema celebrizou-se quando, no final do séc. XIX, foi incluído na colectânea: "The Oxford Book of English Verse". Versão integral do poema:

Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.
In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.
Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.
It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

9 comentários:

Anónimo disse...

Maria Zarco, gosto muito de a ver por cá! Que belíssimo texto, que belíssimas pessoas aquelas sobre quem fala. O mundo devia ter MUITO mais gente assim! Seria seguramente diferente! Obrigada. pcp

Anónimo disse...

Faço minhas as palavras da PCP que subscrevo inteiramente :)
Maria BCC

Unknown disse...

Adorei o filme e confesso que me fartei de chorar, sobretudo por ver que há pessoas boas neste mundo, que sofrem mas não se deixam quebrar. Grande lição para nós todos. Como é que um homem que esteve 30 anos preso continua a saber perdoar e a viver com amor, perdoando aos seus verdugos, em nome do amor ? Só dá para chorar mesmo, relembrando outros que, como ele, também sofreram e que souberam manter a alma... Gandhi, Luther King, Jesus Cristo, o Papa João Paulo II, tantos exemplos a seguir... Obrigado Meu Deus, por nos dares tanta atenção e nos mostrares o caminho... Sempre ferverosos na nossa fé, nos mantemos...

Anónimo disse...

De facto, confirma-se que os grandes Homens nos inspiram. Obrigadíssima pelos vossos apports fantásticos. Q. máximo isto ser um espaço aberto a contributos tão bons!
Maria Zarco

Anónimo disse...

Maria Zarco,
É cada vez mais arrepiante sentir o quanto é bom poder usufruir da tua amizade e desfrutar dos teus sentimentos.
Também vimos o "Invictus" e também chorámos. Chorámos e choramos, sempre que nos confrontamos com situações como esta em que o perdão e o amor pelo próximo é dominante, sobre tudo o que é material e que entrando pelas nossa casas e pelas nossas famílias nos cega e nos bloqueia.
Vimos o mesmo filme que tu e sentimos o mesmo. Obrigado por passares para este magnífico blog as palavras que gostaríamos de saber transmitir tão bem com o tu, mas que só aqueles que são efectivamente bons de coração, são capazes de o fazer.
TC

Anónimo disse...

Querida TC,
Faltam-me palavras para agradecer o teu apport, riquíssimo em tudo o que "tocas", do filme, aos amigos, porque os olhos são os mesmos!
Obrigadíssima também por todos os elos, tão Invictus, que cultivas em tudo o que fazes, das investigações, aos amigos, sempre generosa, como tenho testemunhado e beneficiado, vezes sem conta!
Que giro será um dia passares para um blog os temas espantosos e super apetecíveis que andas a desbravar...
MZ

Anónimo disse...

Maria Zarco,
Lamento imenso desiludir-te, mas de facto não sou a pessoa que imaginas. Sou de facto e cada vez mais, um amigo do fundo do coração, para além de ter arrebatado o coração de uma ainda maior amiga tua.
Gostava de saber como tu, descrever temas, sentimentos e os elos tão INVICTUS que temos a felicidade de usfruir da tua pessoa e neste superblog
TC ou Miguel Vaz Teixeira

Anónimo disse...

Maria Zarco,
Lamento imenso desiludir-te, mas de facto não sou a pessoa que imaginas. Sou de facto e cada vez mais, um amigo do fundo do coração, para além de ter arrebatado o coração de uma ainda maior amiga tua.
Gostava de saber como tu, descrever temas, sentimentos e os elos tão INVICTUS que temos a felicidade de usfruir da tua pessoa e neste superblog
TC ou Miguel Vaz Teixeira

Anónimo disse...

Maria Zarco!

Não sei se me devo estender com considerações pessoais, mas o nome assenta-lhe como uma luva!!!
… é bonito e tão Português!!! Memoriza-se facilmente, um requisito devidamente merecido à pessoa em Maria Zarco; comporta grande força na sua sonoridade e uma imensa carga simbólica, extremamente reveladoras de um modo de viver com muita alma e vivacidade!
Depois a conjugação perfeita do pseudónimo com o título da crónica semanal, “Vai um Gin do Peter`s?”, tão e sempre perspicaz, Maria Zarco!
Mais um à parte, …não resisto!, faça-se jus a um grande país construído pelos nobres feitos do seu povo e falem todas as vozes da seriedade e bom senso!!!, a contrariarem a “Podridão” que actualmente nos governa através de valores incognoscíveis a quem trabalha por um mundo melhor, onde todos possam alcançar com Dignidade o devido estádio de realização pessoal que a cada um pertence por direito.

E bem a propósito, “INVICTUS”, outra DIMENSÃO, INSPIRAÇÃO, POESIA…

… do realizador Clint Eastwood por optar em acentuar de forma construtiva e inteligente singulares aspectos do carácter de um Grande Homem,
… do Homem Grande que os possui e aplica a favor de causas maiores, sob prejuízo da facilitação da sua vida;

Maria Zarco dá-nos uma visão do filme, do romance e de Nelson Mandela muito interessante ao fazer uma análise objectiva, completa, enriquecedora e muito bem escrita. A forma profunda como lê e transmite a beleza da personalidade de Nelson Mandela é peculiar de quem partilha igual magnitude de valores. Muitos Parabéns!

Eu, ao ver o filme, senti-me emocionada com a integridade, sabedoria e bondade de Nelson Mandela.
Invadiu-me uma enorme áurea de ternura e despoletou-se- me um imenso sentido de responsabilidade. Também me diverti, ri e torci intensamente pela vitória dos Springboks e por quantas importantes vitórias esta traria associadas;

O filme centra-se nos dois anos após a libertação de Nelson Mandela, mas no seu conteúdo revela aspectos determinantes de toda a existência do homem de nobres convicções.

Trata-se de uma biografia com uma diferente abordagem, leve e positiva, baseada na árdua tarefa de “Madiba” de reestruturação da Africa do Sul, sem esquecer, em tom de apontamento, as inevitáveis referências a um passado duro de luta por causas justas, de 27 anos de prisão, isolamento e afastamento da Família;

no final compete a cada um reflectir e avaliar o peso deste imenso propósito e atitude de Vida, com a intensidade com que cada qual se propõe a ver; talvez a forma poética como Clint Eastwood nos revela a poesia de Nelson Mandela desperte mais fortes compromissos com a verdade intensa dos factos biográficos sumariamente apontados.

e assim termino… “INVICTUS”: OUTRA DIMENSÃO, INSPIRAÇÃO, POESIA… tudo quanto precisamos para crescermos e nos excedermos no dia-a-dia em prol da construção da Dignidade Humana, e em simultâneo, homenagearmos os Grandes Homens e feitos da nossa humanidade.


Catarina L V

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