Há, em todos os amores nascidos entre dois quase desconhecidos, um não sei o quê de misterioso, de inexplicável, de impalpável. Podem ser acasos que têm a sua existência no espaço de um instante: dois olhares que se cruzam numa multidão, uma madeixa caída sobre o enigma de um olhar penetrante, um sorriso cúmplice numa monotonia generalizada. Um segundo depois e o mundo já girou, e o que era encanto e fascínio volta a ser aborrecimento e rotina.
Jorge e Odete tinham-se apaixonado um pelo outro sem que ninguém vislumbrasse um motivo, ainda que não tivesse de ser lógico. Encontraram-se pela primeira vez em casa de amigos comuns. Nunca ninguém tinha achado grande graça ao estudante de Filosofia em fase de desenvolvimento de uma tese chamada “Os pecados mortais e o seu enquadramento na sociedade de hoje”. Era um rapaz desinteressante fisicamente, com um cabelo num permanente desalinho, uma roupa pingona à qual era impossível associar uma moda ou uma época, mas não a velhice e o pouco cuidado.
Ela, pelo contrário, era uma mulher bem parecida, assediada em permanência por gente que circulava em carros baixos a velocidades elevadas e conhecia as estância de esqui como uma intimidade que esmagava. Tinha uma figura que se aproximaria da perfeição, e uma cara tão interessante que até um pequeno sinal no queixo suscitava sensualidades inexplicadas. Ninguém percebia a motivação dela, o que lhe suscitara uma centelha de amor
O que vês nele, Odete? Que homem mais desinteressante...
E Odete respondia com oferecendo um sorriso e retendo as palavras.
Era um par improvável, mas mesmo assim um par, porque apareciam juntos em todo o lado - festas, jantares sociais, eventos culturais, premières de filmes. Os transeuntes fixavam-se na beleza dela, na sua frescura, na sua aura. Beleza que parecia maior porque há encantos que não só têm um valor absoluto – Odete era muito bonita, em qualquer lado -como têm um valor relativo – Odete era muito mais bonita do que Jorge.
As marés seguiam as suas rotinas mansas, as estações do ano prosseguiam com uma regularidade de relojoaria suíça, a lua mudava de fase seguindo uma regra milenar. Um dia, Jorge apareceu numa festa e revelou-se um homem elegante, bonito, com uma farpela clássica que lhe assentava como roupa por medida num modelo de elite. As pessoas paravam para olhar, sobretudo para avaliar a mudança que parecia radical: o cabelo bem cortado e penteado, umas calças clássicas e bem vincadas, uma camisa igual à de qualquer príncipe.
O que lhe fizeste, Odete? Está um homem tão bonito...
A rapariga sorria e olhava para o Jorge com um misto de admiração e erotismo.
Posso usar esta expressão porque já a discuti com ele no âmbito da sua tese de mestrado. O Jorge, de facto, teve de se arrepender de um grande pecado. É honesto, correcto, com um feitio cordato e não faria mal a ninguém. Mas comete um pecado mortal – a preguiça.... Nem sempre há gente feia, por vezes há gente preguiçosa. E isso também é pecado?
JdB
5 comentários:
Perfilam-se no horizonte os sete pecados mortais?
SdB(I)
Não posso estar mais de acordo, João. São verdadeiramente pecaminosas as figuras desleixadas em que certas pessoas se apresentam na praça pública. Por preguiça, sim, embora não sejam de descartar as hipóteses da avareza e até de alguma soberba (na sua pretensa diferença ou originalidade). :-)
Eu gosto muito de originalidade. Acho giro pessoas arranjadas e pessoas desarranjadas. Na mistura reside, para mim, o interesse. Quem anda no metro de Londres (e em tantos outros) vê as maiores aberrações (os estudantes coreanos e japoneses, for some reason, são absolutamente outrageous). Acho imensa graça a esta loucura. Que bom que pensamos todos diferente. pcp
Mais uma vez genial!
O desleixo e a preguiça contraposto pela beleza, os carros baixos, a teimosia e uma visão própria de gente que não é preguiçosa e insiste...insiste. Espero pelo próximo pecado. Volte sempre, please.
Mais uma vez genial!
O desleixo e a preguiça contraposto pela beleza, os carros baixos, a teimosia e uma visão própria de gente que não é preguiçosa e insiste...insiste. Espero pelo próximo pecado. Volte sempre, please.
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