26 março 2012

Vai um gin do Peter’s?

A exposição no MNAA(1), com título hispânico para intensificar o sentido denso das imagens vindas de Espanha -- «Cuerpos de Dolor, a imagem do sagrado na escultura espanhola (1500-1750)», esteve em Lisboa até 25 de Março. Apesar de as c. de 30 peças já estarem a ser empacotadas para o regresso a casa, como Valladolid(2) está relativamente perto, vale a pena lembrar a qualidade das obras expostas em Arte Antiga, até porque são uma pequena amostra do acervo  guardado no Museu conhecido pelo Prado da escultura espanhola.
«CUERPOS DE DOLOR» remete para o sofrimento espiritual, com enorme envolvimento e entrega da pessoa, num certo arrebatamento cheio de salero (bem à espanhola), difícil de transpor para a lusofonia. De facto, o termo «dor» carrega uma conotação mais passiva e pode até arrastar alguma tristeza, que se quadra pouco com a galhardia sugerida por «dolor».
Cronologicamente, a exposição começava nos primórdios do Renascimento, ainda com traços goticistas, a incluir peças esculpidas por um discípulo de Michelangelo, e avançava pelo barroco adentro até ao rococó, seguindo-se o classicismo setecentista. Vários dos grandes mestres de Espanha estavam ali representados: Berruguete, Juan de Juni, Pompeo Leoni, Gregorio Fernández, Alonso Cano, Pedro de Mena, Pedro de Sierra ou Salzillo.
A expressividade das esculturas é lapidarmente assinalada por Filipe I, citado na mostra do MNAA. Quando passou a reinar em Portugal, após 1560, fez uma visita ao Jerónimos, onde se deparou com uma série destas imagens. Ficou de tal forma impressionado, que teve o seguinte desabafo, misturando o português e o castelhano (note-se que era filho de mãe portuguesa): «Parece que hablan, só falta falarem». De facto, a veracidade daquelas peças – de um cromatismo pujante – parecem insufladas de vida.  

Uma figura a fazer par com outro soldado igualmente portentoso,
ao estilo de Michelangelo, que integravam um conjunto gigantesco,
de c.15m de altura, onde estas imponentes peças mal seriam visíveis.
Impressionante o rigor escultórico de obras situadas no topo, bem longe da vista. 


Um dos aspectos marcantes da mostra é a complementariedade entre o trabalho de escultura e a minúcia da pintura que cobre cada peça, conferindo-lhes um realismo… que só falta emitirem som. À sua maneira, falam-nos (qual filme mudo) da sua época e de modas antigas mas, sobretudo, das convicções profundas, das crenças e anseios interiores de uma geração remota, cujo frémito espiritual nos chega com uma frescura incrível. Nesse sentido, surpreende-nos a sua aptidão comunicativa, capaz de desvelar os movimentos anímicos de séculos passados. Acabamos por reconhecer ali a humanidade de todos os tempos, apesar das exteriorizações bastante datadas.    
O verdugo pertencente a um conjunto muito vasto de um dos passos da Via Sacra (tinha de ser transportado por 60 homens), mostrado ao povo nas procissões da Semana Santa, evidencia os traços cruéis dos sanguinários (hooligans e afins) de qualquer período da história. As diversidades de guarda-roupa em nada escondem a sua universalidade, enquanto exemplar de uma atitude predadora, infelizmente mais comum do que seria desejável.

A mulher austera que personifica Sant’Ana a segurar o livro por onde Nossa Senhora aprende a ler, denota aquela firmeza conquistada a pulso, típica de personalidades frágeis, angustiadas, medrosas, que tendem a refugiar-se numa certa dureza, por razões defensivas. Alguém observava com humor que esta Sant’Ana seria bem mais a sogra de S.José do que a mãe da Virgem! Para se avaliar melhor este desvio, basta lembrar a Sant’Ana de Leonardo Da Vinci, que é hoje a coqueluche do Louvre após um longo restauro. Essa sim, emana a doçura suave da avó do Bebé de Belém. Na Sant’Ana que visitou Lisboa convém realçar a riqueza invulgar na diferenciação das várias texturas: entre a capa de tecido grosso, a gaze finíssima junto ao rosto da imagem e a pele enrugada de uma senhora de provecta idade:

Sant’Ana da exposição do MNAA


Virgem, o Menino e Sant’Ana com o cordeiro, de Leonardo da Vinci


A imagem do homem de modos serenos e profundos, impressos no rosto de um dos santos do deserto (creio que Sto. Antão, já na parte final do circuito expositivo), é o resultado de uma maturidade forjada no silêncio abnegado e humilde, que deixa marcas indeléveis no ser humano.
A candura heróica e muito nobre do rosto que foi capa da exposição, revela a coragem subtil de quem não se deixou endurecer pelas lágrimas, nem vacilou face às dificuldades que lhe calharam em sorte. Corresponde a uma versão bem interessante da Virgem do Calvário, de uma infinita bondade e grandeza de carácter, sem a mais leve réstia de raiva contra os algozes de Cristo. Vemo-la totalmente imersa na dor do Filho, como que a antever o momento maior que vive na Cruz ao aceitar a épica missão de estender a sua maternidade a todos os homens! De uma generosidade sobre-humana.

Virgem das Dores (detalhe) José de Mora (1642-1724) C. 1671
Madeira policromada (Colecção do conde de Güell), 1985 Museo Nac. Escultura, Valhadolid    

Também alguns dos sinais exteriores, como a roupagem ou os símbolos empunhados pelas figuras, ampliam o impacto de toda aquela dramaticidade em 3D. Um exemplo disso é o manto encarniçado do portentoso Ecce Homo, a redundar num epicentro da entrega de Deus em favor dos homens. Aquele manto de cor flamejante é, simultaneamente, a memória do sangue derramado por nós e do nível sublime da realeza de Jesus, sem paralelo com os reis da terra. Vale a pena perceber que o efeito lustroso do tom se obtém por uma camada de ouro aplicada sobre uma base em vermelhão intenso, ao qual a cobertura dourada é depois parcialmente retirada, deixando vestígios metalizados na tonalidade final.  
Como observava o texto do MNAA: é (foi) uma exposição inquietante, a ultrapassar as fronteiras da estética, que nos revela a humanidade plasmada em obras de arte. Talvez os artistas ali tenham deixado as vibrações mais fundas da sua alma, cunhando as peças com o próprio sagrado que habita cada ser humano. Um dom acessível a quantos se aventuram pelo universo infinito do sagrado! Um arrojo psicológico que se enquadra espantosamente no crescimento a que a Quaresma convida…

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1)  Museu Nacional de Arte Antiga | www.facebook.com/mnaa.lisboa. Rua das Janelas Verdes, 1249-017 Lisboa
      Tel: +351 21 3912815   
     « “Cuerpos de Dolor” inscreve-se numa nova dinâmica, à qual pertencem a recente exposição “Confrontos. Bosch e o Seu Círculo” – que possibilitou ao Museu Nacional de Arte Antiga acolher duas importantes obras do Museu Groningen (Bruges, Bélgica) –, a transposição para a National Gallery of Art (Washington, EUA) da mostra “A Invenção da Glória. D. Afonso V e as Tapeçarias de Pastrana”, ou a circulação, primeiro para o próprio Museo Nacional de Escultura e, em seguida, para o não menos prestigioso Museo de Bellas Artes de Valencia (2 Novembro de 2011 - 8 Janeiro 2012), da exposição “Primitivos. El Siglo Dorado de la Pintura Portuguesa

(2) O Museu de Valladolid congrega a maior colecção de escultura de Espanha, albergada num conjunto de edifícios com enorme valor histórico: o Palácio de Villena, a Casa del Sol e a Igreja de San Benito el Viejo.
      CONTACTOS: www.museoescultura.mcu.es. Morada:  Calle de las Cadenas de San Gregorio, Valladolid; tel. +34
983 25 03 75. 


3 comentários:

Ana CC disse...

Tive a sorte de fazer esta visita com uma das pessoas que mais sabe desta arte e desta época.
É tudo esmagador.
Vale a pena.

Anónimo disse...

MZ, gostei dos comentários, muito certeiros, relativamente à exposição. Também eu a fui ver. E fiquei rendida à força e espiritualidade da "dor" espanhola do Renascimento até ao Barroco tardio. Também já o tinha ficado na pintura, com alguns quadros do Zurbarán (tem um São Francisco de arrasar), e na escultura sobre o mesmo tema em Londres. Esmagador, como bem diz a AnaCC. Obrigada, MZ, por este momento cultural. pcp

Anónimo disse...

De facto, foi um privilégio termos em Lisboa, perto de casa, imagens tão poderosas. Os espanhóis têm mto esta característica (em concreto no período da exposição) de não se fixarem tanto na estética, mas procurarem dar o máximo de expressividade à sua arte. Obrig. à Ana CC e à pcp pelas achegas óptimas, MZ

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