Página de um diário
Vi-te hoje de manhã na praia, a cochichar com
amigas, a falarem disto e daquilo, de coisas das férias. Talvez a falarem de
nós, rapazes desajeitados uns, mais afoitos outros, a suspirarmos nos toldos e
nos cigarros escondidos por um minuto de atenção, por uma mão fugidia no
rebentamento de uma onda, por um sorriso rápido, mesmo que envergonhado, que
nos desse a certeza de um entusiasmo retribuído. Talvez a rirem de nós, miúdos infantis cujos corações batiam a descompasso por uma cara que rodeava as primeiras barracas e assomava para encher de sol o que já estava cheio de sol.
Voltei a ver-te hoje de tarde, em casa de
amigos comuns, onde eu dava os primeiros passos a jogar às cartas, a aprender
com os outros que oito ou nulos pode
ser uma frase demolidora, que as passagens
à dama não são sensualidade, mas risco. Lembras-te que te entreguei o
meu maço de cigarros e te pedi para o guardares? Eu tinha bolsos e podia
escondê-lo dos olhares adultos, mas queria dar-te qualquer coisa, por mais
ridícula que fosse, que constituísse um elo único entre nós. E tu guardaste-o entre os dedos cujas unhas lutavam contra o hábito ou contra os nervos, e aceitaste, dizendo claro, porque era uma coisa minha, e só tu a poderias segurar.
Tive ainda a sorte de te ver hoje, já antes de
jantar, no meio do verdade e consequência
com que o sol se punha todos os dias. É
verdade que gostas do...? E o meu
pulso a bater desalmadamente, sem saber se era medo do teu arrependimento, se
era a satisfação de te ver corar por fora aquilo que eu já corara por dentro. E
tu a dizeres que sim e a desviarmos ambos a
cara, porque não sabíamos ainda como sustentar um olhar de verão que se ambicionava exclusivo. Tu a dizeres sim e a rires nervosa, com um coração que te saltava pela boca e pela camisa abotoada até cima.
Vi-te por último de noite, no terraço de um
prédio sem graça de uma rua qualquer. Éramos muitos, rapazes e raparigas de
férias, semi-libertos de uns Pais para os quais perigo ainda não rimava com
droga ou álcool mas com aquilo que parecia bem, ou com a insatisfação da
resposta à pergunta o menino é filho de
quem? Pedi-te para dançar - uns minutos de quase imobilidade, acompanhados por uma música que existia porque tu existias, porque não a dançaria com outra. A tua cara
encostada no meu ombro como que a dizer que sim, que confiavas, que iríamos ao
cinema no inverno, nos escreveríamos em papel de fantasia partilhando as aulas do liceu, os namoros dos outros, as patetices dos outros, os professores e mais isto e mais aquilo, que criaríamos um mundo nosso que duraria muito tempo, mesmo que não soubéssemos o que era isso de muito tempo.
JdB
7 comentários:
O texto é bom mas era melhor ainda se a destinatária do mesmo o pudesse ler (ou lendo-o, sabe-se lá, soubesse que lhe era destinado). Boa escolha a do Cat Stevens. Poucos cantores simbolizam tão bem aquela época e os passos de dança mais íntimos que então se davam.
O amigo é perspicaz, mas nem sempre acerta. O texto não é destinado a ninguém, mas a uma época. Não por ser a época que era, mas por aquilo que representava, visto trinta e muitos anos depois. O raciocínio é complicado? Talvez. Prerrogativas do editor e dono do estabelecimento.
Volte sempre, meu bom amigo.
"se era a satisfação de te ver corar por fora aquilo que eu já corara por dentro" é de génio!
Concordo que a música não pode ser mais apropriada ao texto (ontem "Father and Son" teria vindo a calhar!).
Abr
fq
Adoro estes revivalismos e a forma como os descreve. A música é intemporal e parece que é a primeira vez que não questiono o seu gosto musical.
Parabens (alias com a entrada em Carneiro apetecia-me usar outra palavra com p) esta's a escrever cada ver melhor.
Parabéns João,
Conseguiu despertar em mim um saudosismo delicioso.
O ambiente está notável, "Conta-me como foi..." vai precisar de si para melhorar.
Beijinhos
Que encanto de texto. O tempo em que a vida "séria" ainda não tinha verdadeiramente começado. Muito bom, JdB. pcp
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