15 março 2012

Moleskine


Chamava-se Mafalda - e tinha um olho de cada cor.
Divorciara-se aos 49 anos quando o topo da carreira a vira chegar. Dera 25 anos à multinacional e, numa terça-feira invernosa, regressada de um conferência onde se discutira o equilíbrio fino entre a saúde das populações e a riqueza das farmacêuticas, percebera, pelo vazio humano da sala, que ocupava um lugar cada vez mais residual no coração do marido.
Alguns meses antes, vítima daquela perspicácia que mata as ilusões da alma, começara a vislumbrar o esmorecimento sexual como terceiro parceiro da relação. Ela mantinha o desejo – talvez fosse apenas o desejo – mas ele esquecera-se dela, de um corpo mediano de praticante de badmington, e de um peito na fronteira entre o tem o tamanho certo e o que pena não ser um pouco menor. Esquecera-se ainda da assimetria colorida dos olhos, fascinado por uma fadista que era em tudo média, e que trauteava o fado Vitória como sinal casto de apetências lascivas.
Conheceu então o André que, aos 30 anos, se alcandorara a trainee com responsabilidades de assistente pessoal. Era um rapaz com formação em marketing e um cabelo castanho discreto que nascia dos lados, para terminar numa cumeada de baixo relevo. Na primeira entrevista que os colocou frente a frente, Mafalda reparara que em momento algum o jovem retirara os olhos dos seus próprios olhos, como se achasse indelicado fixar-se no último botão fechado de uma camisa de qualidade. A educação de André cativara-a.
Durante um ano viajaram em serviço. Mafalda partilhou com ele o seu gosto pela música renascentista, pela literatura russa, pelos primitivos. Falou-lhe do futuro da medicina, da riqueza das nações, do agnosticismo esclarecido e do novo cinema francês. André ouvia-a, nunca baixando os olhos até ao ponto onde o decote discreto revelava a sensualidade de sardas espalhadas a eito. Ela falava dos prémios Goncourt, do Sundance Festival ou de marrons glacés e ele sorria, numa veneração fixada no rosto.
Um ano mais tarde deitaram-se pela primeira vez juntos, ao som da Torre Eiffel e de uma televisão onde se ouvia we’ll allways have Paris. Acharam que a frase era só para eles e beijaram-se como se não houvesse dia seguinte, a pintura não existisse sem eles, a literatura não fosse mais do que o romance que viviam. Esqueceram-se do mundo, excepto de uma nudez que ocupava todos os seus sentidos. Exploraram tudo e, pela primeira vez, André não lhe fixou os olhos, vendo Mafalda na plenitude de um corpo desnudo que lhe era oferecido. No fim da noite, com a imagem do frio nocturno e cinéfilo de Casablanca, Mafalda comoveu-se, sentindo que talvez não merecesse tamanha alegria. André voltou a olhá-la nos olhos e limpou-lhe uma lágrima furtiva.
O trainee mudou-se discretamente, levando pouca roupa, uma imagem de S. Judas Tadeu e a fotografia de uma avó sorridente que o pegava ao colo. Continuaram a viajar e ela mencionou-lhe a música trovadoresca, o realismo mágico sul-americano, os genéricos e as saudades de um badmington que praticava com dedicação e destreza. Ele ouvia-a, sorria e, numa cama larga com vista para a igreja da Estrela, beijava-a, acariciava-a, dava-lhe prazer. No fim, como se fosse um ritual, limpava-lhe uma lágrima furtiva, porque Mafalda continuava a sentir que talvez não merecesse tamanha alegria.
Um dia Mafalda entrou em casa devagarinho, porque há quem imagine nos outros uma alegria desmedida com o que é inesperado. Algo dentro dela a impediu do lugar-comum da surpresa! que se grita aos incautos. O jovem, frente a uma televisão onde bebés flutuavam no éter fruto de uma gravidade que desaparecera, agitava os braços ao som de uma música de fundo que se repetia a cada segundo e meio, contorcendo-se e balbuciando sons ininteligíveis. Ao seu lado, no chão elegante de madeira corrida, meia dúzia de fotografias dela própria. Os olhos tinham sido todos pintados da mesma cor, como se houvesse um qualquer horror à assimetria.
Mafalda manteve-se silenciosa. Numa fracção de segundo percebeu que os princípios activos, o aquecimento global, a pintura abstracta, e até a ideia de que teriam sempre Paris, eram a evidência de um monólogo gritante e sem retorno. Fechou a porta e saíu, porque mesmo que tivesse dúvidas sobre a existência de uma certa alegria, queria que André lhe limpasse uma lágrima furtiva.

JdB    

5 comentários:

Maf disse...

Adoro estes seus contos :-) Não sei bem se percebi o final deste! Falha minha sem dúvida, que estava à espera de um final "cor de rosa".... mas esses (finais cor de rosa) pertencem mais ao mundo do cinema.
Tenha um bom dia !

Anónimo disse...

Sauda-se o regresso
SdB(I)

Ana CC disse...

Saúdo também saudosa destas crónicas únicas.

Uma das suas artes é deixar o leitor em suspenso, cheio de liberdade para encontrar um fim. Tudo é possível e cada um constrói uma explicação conforme a sua sensibilidade e vontade.

Neste caso estou com a Maf. Pergunto-me sobre a saída furtiva, depois de descobrir que este era o relato era uma história vivida só por um dos personagens.

Não tenho meios para aplicar medidas coercivas à sua ausência prolongada, mas acho que devia pagar multas.

Anónimo disse...

Mas então ela deixou-o para sempre, percebendo que não havia "equivalência" entre os dois, ou não o quis perturbar na sua excessiva e gritante juventude para voltar mais tarde? Não percebo.... pcp

Anónimo disse...

Este texto é muito bonito, gostei muito de ler, muito obrigado.
António

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