Nada como a vista aérea para se apanhar a visão global. Basta lembrar que é
a melhor forma de mapear um território ou mesmo de substituir os mapas clássicos,
como faz o Google earth. Os benefícios directos de captar a big picture não se ficam pela geografia.
Também na gestão do dia-a-dia esta capacidade de distanciamento, de que falava
Brecht, é utilíssima para relativizar posições, adquirir realismo e assim
discernir o curso dos acontecimentos.
O fotógrafo francês Yann Arthus Bertrand aplicou à fotografia esta técnica de
vistas abrangentes, só possíveis planando sobre o planeta. É espantoso como
tudo se torna lindo através da sua teleobjectiva, mostrando padrões minuciosos
e rendilhados, formados pela explosão de cores e volumes que revestem a crosta
terrestre. Não por acaso, os primeiros astronautas a chegar à lua ficaram
fascinados com a beleza do planeta azul
e incrédulos como era possível sofrer-se tanto, guerrear-se e destruir-se
loucamente naquela esfera maravilhosa suspensa no cosmos que, de fora, se assemelhava
ao paraíso.
Será que tudo se revela melhor a partir de cima?
Na pintura, procurou-se esta perspectiva ampliada, a partir de um ponto de
observação distante, só que ao mesmo nível do episódio representado, como uma
câmara fotográfica estrategicamente colocada. Embora sejam raras, algumas telas
exploraram a perspectiva aérea. Coincidentemente,
uma tem a ver com a Semana que ontem começou… Porque foi desse ângulo original
que o conselheiro de Sta. Teresa de Ávila, o seu “pequeno Séneca” – S.João da
Cruz – procurou desvelar um pouco o mistério da Cruz de Cristo:
Sob um fundo quente, num dourado intenso, sacralizado como um ícone, o
grande místico espanhol sugere-nos a perspectiva do próprio Deus, mais próximo
da mente e do coração do Crucificado que dos algozes e da multidão acumulada no
Gólgota (e que é a óptica comum das pinturas). Mas o misterioso momento, tão difícil
de transpor para a tela, terá justificado a ousadia do artista místico.
Impressionado com a obra-prima do século XVI, Dali (1904-1989) encontrou inspiração
para os seus estudos em redor do tema. Na versão surrealista, Cristo perde a
luz calorosa do ouro quinhentista, irrompendo numa solidão total, selada pela
escuridão profunda que parece ter-se apoderado da face da terra. Pretendia-se
pintar a hora das trevas. Embora estejam omissos os sinais da tortura brutal, ressalta
de forma quase palpável a dor
psicológica, afectiva e anímica.
Fiel ao surrealismo, a obra de Dali desdobra-se numa dupla representação de
momentos distintos (apesar de se cruzarem ambos na vida de Jesus), com
significados aparentemente antagónicos, apesar do jogo de luz seguir o percurso
do sol: avançando do poente para o breu nocturno. Na zona de baixo, escapando à
noite da Cruz, somos transportados para um cenário incrivelmente sereno, talvez
junto ao lago das grandes pregações de Jesus – o Tiberíades. Surge num efeito
de flash-back para uma fase anterior à da morte, onde a paz silenciosa das
águas do lago contrastam com o silêncio espesso e tenebroso de Sexta-feira
Santa, pintada na parte superior da tela. Também nisto, a obra do século XVI
diverge substancialmente da visão de Dali, relevando uma hora, em simultâneo, dolorosa
e já misteriosamente gloriosa, prefigurada pelo dourado poderoso do fundo, raiado
de uma luz límpida e magnífica.
A solidão em Dali parece mais sofrida, esmagadora e estéril que a solidão
sacrossanta e fecunda em S.João da Cruz, onde a riqueza multifacetada da
Crucifixão consegue suplantar a dor e o abandono do Condenado, apesar da imensa
dor e do abandono das 12 horas de agonia, até ao último sopro de vida.
Boa Páscoa, com o sentido primaveril da tela do século XVI, em que da
semente insignificante e perdida na terra pode jorrar vida em abundância: da
planta ao botão, da flor ao fruto… iluminados a partir de dentro, por uma luz
límpida e magnífica.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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