O papa Francisco, desde o início do seu pontificado, não cessa de repetir e mostrar-nos que «Jesus de Nazaré com a sua palavra, com os seus gestos e com toda a sua pessoa revela a misericórdia de Deus»: se se deseja saber qual é a intenção de Deus, como age, então - antes de tudo - é preciso deter-se a observar Jesus, como se move de compaixão e olha, toca e reergue os pobres e os desalentados da história, como oferece perdão, como sabe tomar conta de crianças, mulheres e homens de muitos modos feridos, para os restituir à vida e aos seus afetos mais queridos.
«No curso dos séculos a arte soube narrar com felicidade a misericórdia de Deus, o seu cuidado paciente e tenaz pelo feliz cumprimento da vida de cada ser humano. Nos Museus do Vaticano, que eu tenho o privilégio de dirigir, agrada-me ficar bastante tempo diante de algumas obras que, a meu ver, a representam de modo exemplar.» É com estas palavras que abre a conversa o professor Antonio Paolucci, de 77 anos, desde 2007 à frente dos Museus do Vaticano.
«A primeira obra que desejaria citar é a "Lamentação sobre Cristo morto", de Giovanni Bellini, o veneziano Bellini, dito o Giambellino, um dos maiores pintores de todos os tempos, prossegue o responsável. «Esta magnífica pintura representa o Cristo deposto da cruz; rodeiam-no José de Arimateia e Nicodemos, os piedosos judeus que tomaram sobre si o cuidado do seu corpo após a morte e o depuseram no sepulcro. E depois, em primeiro plano, está ela, a Madalena, que entre as suas toma a mão do amado, num ato de dedicação total. Esta mulher, "a pecadora" por antonomásia, que na iconografia católica é sempre belíssima e vestida com roupas preciosas, chora a morte de Jesus. É preciso olhar atentamente o seu rosto terno, apaixonado, amoroso, e o seu gesto: as mãos que apertam aquelas agora inertes do Cristo são o foco da composição, o elemento mais comovente: aí vejo a misericórdia, o poder e a beleza regeneradora do perdão de Deus».
Deambulando pelas salas dos museus embate-se numa obra que, afirma Paolucci, entre todas as que estão expostas, poderia constituir o símbolo do Ano da Misericórdia: a "Transfiguração" de Rafael. A pintura, a última executada pelo mestre de Urbino, representa dois episódios narrados seguidamente nos Evangelhos sinóticos: ao alto, a transfiguração de Cristo, rodeado dos profetas Moisés e Elias, e em baixo, em primeiro plano, a multidão e o rapaz que será por Ele curado no regresso do Monte Tabor. «Considero a "Transfiguração" a obra-prima das obras-primas», diz o professor. «É a pintura que se coloca no vértice de toda a produção de Rafael, concluindo-a e exaltando-a do ponto de vista cronológico e estilístico. A parte inferior da obra, caracterizada por tons escuros, dramaticamente realistas, quase à maneira de Caravaggio, é ocupada pelo drama de todos e de cada um, do medo, das paixões humanas, da esperança contrastada. O jovem possuído pelo mal, como todo o ser vivo debaixo do céu, espera ser libertado do infortúnio que o oprime e devasta. Os personagens que estão ao seu lado querem ajudá-lo, sabem que a sua salvação será também a deles. Mas só Cristo, transfigurado no Tabor, pode salvar. Na escuridão da vulnerável natureza humana - isto é o que Rafael quer narrar - resplandece o Salvador. Na parte alta da pintura triunfa a luz. A luz é vocábulo do Filho, por isso o seu rosto, belíssimo, resplandece como o sol do meio-dia. Cristo como sol que ilumina o mundo: Cristo que salva e perdoa».
Para Paolucci a Capela Sistina, com as obras-primas de Miguel Ângelo e de outros admirados artistas, como Pietro Perugino, Sandro Boticelli e Domenico Ghirlandaio, é uma paragem imprescindível em ordem à misericórdia divina. Lá, naquelas paredes, está tudo: as origens do mundo e o seu destino, o Antigo e o Novo Testamento, a incarnação do Filho e o seu ligame irreversível com o homem, o juízo para todos e para cada um, o ciclo total do catecismo e da vida, a da humanidade e a de cada um de nós. Na Sistina está contida a história da salvação, a história do olhar e do toque criador e misericordioso do Senhor. Aconselho permanecer entre estas obras pelo menos uma hora, e até mais. Num museu não é necessário ver tudo, correndo de uma sala para a outra, numa espécie de bulimia do belo e de consumismo cultural. É preciso deixar-se agarrar e encantar, sem pressa».
Cristina Ugoccioni
In "Vatican Insider"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado aqui em 22.04.2016
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