O que seria da humanidade sem o tempo. Não é só o vinho do Porto que sai favorecido. Também a arte precisa do efeito do tempo para ficar limpa de toda a espuma atordoante do momento e recuperar o seu sentido profundo. No fundo, obter o privilégio de mostrar em pleno o que é, depois de esfumadas as aparências.
Uma alegoria poética contava que numa ilha distante, habitada pela Felicidade, pela Tristeza, pelo Conhecimento e por muitos outros atributos, correu a notícia de que aquele pequeno pedaço de terra se iria afundar. Todos se precipitaram a arranjar maneira de fugir dali, em barcos, à boleia, como fosse possível. Só um tardava em levantar ferro – o Amor, que queria resistia até ao limite, para lá do razoável. Quando a água quase submergia o pouco que restava da ilha, começou este último resistente a pedir ajuda aos que ia avistando, na sua azáfama para se porem a salvo. Mas as respostas não eram encorajadoras. Da Riqueza, que viajava num iate de luxo, ouviu: Não há espaço; aliás, já estou com excesso de peso. Referia-se à carga cheia de preciosidades que levava consigo. A Vaidade, no alto do seu veleiro lindo, explicou-lhe: Nesse estado encharcado, sujavas-me o barco. Tem paciência... Nem a Tristeza estava disponível: Oh Amor, estou tristíssima. Não consigo estar com ninguém -- preciso de ficar sozinha. A própria Felicidade passou pelo Amor, mas estava tão radiante que nem ouviu o pedido de socorro! Quando já não contava com ajudas, alguém de muita idade disse-lhe: Eu levo-te. Vem comigo! O Amor sentiu-se tão agradecido e feliz, que se esqueceu de perguntar o nome do seu salvador.
Chegados ao porto, o navegador desconhecido seguiu o seu caminho, discretamente. Só nesse momento o Amor se deu conta de que tinha perdido a oportunidade de saber quem o salvara, na vigésima quinta hora. Lembrou-se, então, de recorrer a outro amigo, mais velho e sábio, o Conhecimento, para tentar descobrir. A resposta foi imediata: O Tempo.
Mas porquê o Tempo?, espantou-se o Amor.
Porque só o Tempo é capaz de compreender como o Amor é grande e tão necessário!
Aproveitando um saudável hiato temporal de cerca de meio século, o National Film Registry dos Estados Unidos decidiu revisitar a produção de Hollywood para escolher as obras que mereceriam cuidados especiais de arquivo, para chegarem nas melhores condições às gerações vindouras. Na lista dos filmes imperdíveis entrou aquele que acompanha a biografia de um homem intemporal ou, melhor dito, de todos os tempos, conforme reza no título da obra dedicada a Thomas More: «A Man for all Seasons». De 1966, este título em inglês arcaico cita um conterrâneo de More – Robert Whittington – que, em 1520, lhe elogia a integridade e as raras virtudes, considerando-o por isso apto a enfrentar qualquer circunstância histórica, qualquer época.
More é conhecido pelos seus méritos profissionais, que impressionaram o difícil Henrique VIII e intimidaram Cromwell, além de outros pares do Reino, vários deles a conviver mal com o seu êxito pessoal e político. Não é pouco ter sido o primeiro Chanceler do Reino leigo e, ainda por cima, escolhido por um monarca tão rigoroso quanto caprichoso. Também não é pouco, os seus calhamaços sobre figuras históricas terem inspirado Shakespeare. “Ricardo III” é um dos exemplos.
S.Thomas More retratado por Holbein, o Jovem (1527). |
A somar à envergadura intelectual, à erudição e à notável sabedoria de vida, More possuía uma cortesia e um charme que faziam dele uma companhia extraordinária. Numa época de transportes rudimentares, Thomas M. arranjou amigos por toda a Europa ocidental, nomeadamente Erasmo de Roterdão, que deixou escrito o quanto apreciava conviver com a família do inglês: «Verdadeiramente, é uma felicidade conviver com eles».
Como pai e marido foi também exemplar, educando os quatro filhos com um esmero inédito, incluindo as filhas no ensino dado aos rapazes, que tinha disciplinas muito variadas: latim, grego, lógica, astronomia, medicina, matemática e teologia. O seu temperamento jovial e divertido contribuíam para o ambiente animado da casa de família, sempre repleta de amigos de todas as idades. Curiosamente, foi um genro o primeiro a deixar escrita uma biografia sobre More.
Entre as suas múltiplas qualidades, foram a serenidade e o sentido de humor finíssimo que ficaram mais associados à sua personalidade, reconhecido inclusive pelos diversos adversários que pululavam no mundo bafiento da corte de um rei voluntarista e belicoso. Calha que o humor é dos atributos que quadra pouco com os políticos (não vá apoucar-lhes a imagem) e q.b. desvalorizado nos santos de quem se conhecem episódios divertidos, como se pudesse diminuir-lhe o grau de heroísmo e bravura. À parte de prováveis equívocos sobre o conceito de santidade, precisamente o humor é um traço dominante em More, tendo-lhe sido de extrema utilidade em momentos críticos da carreira pública, enquanto Chanceler. Desempenhou-a de forma tão harmoniosa e valorosa que foi escolhido para Patrono dos políticos e governantes.
Algumas das suas tiradas são antológicas, revelando uma riqueza de perspectivas, que ajudam a explicar o alcance profundo e incisivo que o humor pode ter.
Seguem-se um par de citações atribuídas a Sir Thomas More, que foi pródigo a escrever, sendo a sua obra mais célebre a «Utopia». Os meses passados na prisão na Torre de Londres, não só não lhe ensombraram a boa disposição, como serviram para pôr a escrita em dia e multiplicar os documentos legados à posteridade. E deram uma boa ajuda ao argumentista (Robert Bolt) do filme e da peça de teatro de «A Man for all Seasons», ao construir os diálogos para a figura histórica do Chanceler do Reino:
«I neither could nor would rule my King. But there’s a little... little, area... where I must rule myself. It’s very little—less to him than a tennis court.» – a tentar consolar a mulher explicando-lhe por que não podia ceder ao que considerava ser um capricho perigoso do soberano.
A um conhecido a quem More aconselhou a carreira do ensino:
Sir Thomas More: Why not be a teacher? You'd be a fine teacher; perhaps a great one.
O interlocutor: If I was, who would know it?
Sir Thomas More: You; your pupils; your friends; God. Not a bad public, that.
A um amigo, o duque de Norfolk, que o instava a desistir do braço de ferro com o rei, ao menos em nome da camaradagem:
Duque: Oh confound all this. I'm not a scholar, I don't know whether the marriage was lawful or not but dammit, Thomas, look at these names! Why can't you do as I did and come with us, for fellowship!
Sir Thomas More: And when we die, and you are sent to heaven for doing your conscience, and I am sent to hell for not doing mine, will you come with me, for fellowship?
Ainda a Norfolk, exemplificando com ironia onde cada um encontra os limites entre a obediência à autoridade e a zona inviolável da consciência:
Sir Thomas More: Have I your word that what we say here is between us two?
Duque: Very well.
Sir Thomas More: And if the King should command you to repeat what I may say?
Duque: I should keep my word to you.
Sir Thomas More: Then what has become of your oath of obedience to the King?
Duque: You lay traps for me!
Sir Thomas More: No, I show you the times.
Num diálogo muito construtivo com a filha e o genro, a quem escreveu inúmeras cartas, a desconstruir os preconceitos sobre bons e maus e a típica tentação da justiça directa e imediata. Educativo até ao fim:
Margaret More: Father, that man's bad.
Sir Thomas More: There's no law against that.
William Roper: There is: God's law.
Sir Thomas More: Then God can arrest him.
Com graça, observava ao genro (William Roper), que veio a escrever a primeira biografia de More:
«Now, listen, Will. Two years ago you were a passionate churchman. Now you're a passionate Lutheran. We must just pray that when your head's finished turning, your face is to the front again.»
Nas diatribes armadilhadas e duras com Cromwell, More conjugava rigor e habilidade, mantendo o discernimento e até um distanciamento corajoso a enfrentar o cerco em que alguns o tentavam enredar, invejando (entre outras más razões) a estima que o rei tinha por ele:
Sir Thomas More: You threaten like a dockside bully.
Cromwell: How should I threaten?
Sir Thomas More: Like a minister of state. With justice.
Cromwell: Oh, justice is what you're threatened with.
Sir Thomas More: Then I am not threatened.
A contrapor ao Cardeal Wolsey, que pactuava com o novo relacionamento do rei com Ana Bolena, pouco tempo depois decapitada, como More:
Cardeal: That... thing out there; at least she's fertile.
Sir Thomas More: She's not his wife.
Cardeal: No, Catherine's his wife and she's barren as a brick; are you going to pray for a miracle?
Sir Thomas More: There are precedents.
Defendendo-se vigorosamente das insinuações caluniosas de Cromwell: «I am the king's true subject, and I pray for him and all the realm. I do none harm. I say none harm. I think none harm. And if this be not enough to keep a man alive, then in good faith, I long not to live.»
À hora da morte, ainda brinca com o carrasco por o enviar para Deus. Nesse momento derradeiro, rezou pelo rei e por todos os súbditos do seu país muito amado, deixando uma última mensagem para clarificar o seu ponto, a aplicar à letra o sábio lema sobre a divisão de poderes – a César o que é de César…
«I am commanded by the King to be brief, and since I am the King's obedient subject, brief I will be. I die his Majesty's good servant but God's first.»
Ao Arcebispo Cranmer, que reage ao recado de More ao seu algoz:
Começou por dizer More ao carrasco, dando-lhe uma moeda: I forgive you right readily. Be not afraid of your office; you send me to God.
Contrapõe o Archebishop: You're very sure of that, Sir Thomas?
Sir Thomas More: He will not refuse one who is so blithe to go to him.
Ficará para um próximo gin o filme de Zinnemann «A Man for all seasons», premiado com 6 Óscares, a incluir os principais, além de vários Globos de Ouro, Baftas e ainda um prémio do Festival Internacional de Moscovo, no auge do comunismo e da Guerra Fria. Até a capital do império soviético se vergou à qualidade do filme-biográfico de um homem de todos os tempos.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
1 comentário:
Um gin estimulante, como todos os anteriores - e, aliás, também como o próprio perfil de Thomas Morus, que sempre me encantou/desafiou, desde que com ele "travei conhecimento" (nas aulas de Ciência Política do Prof. Freitas do Amaral). Fico à espera de poder saborear o próximo gin, querida Emilinha! Bjs
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