(i) A ideia de suspensão da incredulidade tem 200 anos: em havendo um interesse humano e uma semelhança com a verdade num conto fantástico, o leitor ignoraria a implausibilidade da narrativa.
(ii) Numa conversa que aborda temas da igreja católica, e perante a crítica continuada de um dos participantes, o conferencista diz-lhe: sabe o que me parece que lhe falta? Paixão!
(iii) Afirma Pseudo-Longino (século I): o Sublime não conduz os seus ouvintes à persuasão, mas à exaltação, porque a eliminação imprevisível por ele provocada prevalece sempre sobre tudo o que convence ou agrada.
***
Destes três pressupostos se poderia dizer, numa abordagem repentista, que o seu conjunto intersecção é vazio. De facto parecem ser desconexos e, no entanto, não o são, pois abordam o mesmo tema: a necessidade de desracionalização (sim, sim, a palavra não deve existir) de parte da nossa vida. Schiller, o filósofo alemão que escreveu abundantemente sobre o Belo e o Agradável, achava que as pessoas demasiadamente racionais ou lógicas perdiam a capacidade de ver o Sublime.
Visto por um certo ângulo, há uma total similitude entre pertencer à Igreja Católica e ler um romance. O que é esse ângulo, esse menor múltiplo comum que liga dois aspectos tão diferentes da história do mundo ou de cada um de nós? A resposta está na suspensão da incredulidade que, é por seu lado, o princípio da desracionalização. Assim sendo, os pressupostos (i), (ii) e (iii), não só não são disjuntos como se intersectam fortemente.
Suspender a incredulidade é, repito, ignorar a implausibilidade da narrativa; é acreditar que aquilo é verdade, mesmo sabendo que não poderia ter acontecido (ou nós não concebemos possível com o nosso mindset); é deixar-se arrebatar pelo inverosímil, pelo encanto de uma história ou pela forma como ela é contada; é querer ser o herói, ansiar pelo castigo justo do vilão, rir como a criança que ri naquela história, sofrer com os que sofrem, sentir no corpo ou no espírito as dores que são de outrem. Mas suspender a incredulidade é também deixar-se invadir pela sensação de uma descoberta, pela visão do que era até então desconhecido.
O olhar excessivamente racional ou lógico tem tradução num gesto físico concreto, observável a olhos nus: é o olhar que, por demasiado próximo do objecto, detecta facilmente a imperfeição do contorno de uma letra impressa, uma mancha dissonante nos olhos de uma criança pintada a óleo, a implausibilidade de uma paixão que nasce numa franja negligente da violinista. É o olhar que, por demasiado próximo do objecto, vê a inutilidade do incenso que se queima numa cerimónia religiosa, a soturnidade de um coro de Bach a cantar a paixão de Cristo, a incoerência imperdoável e demolidora daqueles que pregam o que não fazem ou o fazem num léxico despropositado. Um olhar excessivamente próximo detecta a pequena falha que desfeia, o pequeno defeito que corrompe, o pequeno desvio que elimina. Não vê o conjunto, o global, a floresta onde tudo acontece. Fixa a árvore, talvez o arbusto, seguramente a erva daninha.
Suspender a incredulidade na leitura de um romance, ou suspender a incredulidade na nossa história com a Igreja Católica é pormo-nos à distância certa, acreditar na plausibilidade do implausível, aceitar o rito como agregador de uma multidão heterogénea, não descurar a importância dos pormenores, acreditar na busca de uma perfeição humanamente incerta. Suspender a incredulidade é deixarmo-nos arrebatar pela paixão ou pela exaltação, abrindo espaço para a entrada do Sublime.
Suspender a incredulidade é, repito, ignorar a implausibilidade da narrativa; é acreditar que aquilo é verdade, mesmo sabendo que não poderia ter acontecido (ou nós não concebemos possível com o nosso mindset); é deixar-se arrebatar pelo inverosímil, pelo encanto de uma história ou pela forma como ela é contada; é querer ser o herói, ansiar pelo castigo justo do vilão, rir como a criança que ri naquela história, sofrer com os que sofrem, sentir no corpo ou no espírito as dores que são de outrem. Mas suspender a incredulidade é também deixar-se invadir pela sensação de uma descoberta, pela visão do que era até então desconhecido.
O olhar excessivamente racional ou lógico tem tradução num gesto físico concreto, observável a olhos nus: é o olhar que, por demasiado próximo do objecto, detecta facilmente a imperfeição do contorno de uma letra impressa, uma mancha dissonante nos olhos de uma criança pintada a óleo, a implausibilidade de uma paixão que nasce numa franja negligente da violinista. É o olhar que, por demasiado próximo do objecto, vê a inutilidade do incenso que se queima numa cerimónia religiosa, a soturnidade de um coro de Bach a cantar a paixão de Cristo, a incoerência imperdoável e demolidora daqueles que pregam o que não fazem ou o fazem num léxico despropositado. Um olhar excessivamente próximo detecta a pequena falha que desfeia, o pequeno defeito que corrompe, o pequeno desvio que elimina. Não vê o conjunto, o global, a floresta onde tudo acontece. Fixa a árvore, talvez o arbusto, seguramente a erva daninha.
Suspender a incredulidade na leitura de um romance, ou suspender a incredulidade na nossa história com a Igreja Católica é pormo-nos à distância certa, acreditar na plausibilidade do implausível, aceitar o rito como agregador de uma multidão heterogénea, não descurar a importância dos pormenores, acreditar na busca de uma perfeição humanamente incerta. Suspender a incredulidade é deixarmo-nos arrebatar pela paixão ou pela exaltação, abrindo espaço para a entrada do Sublime.
JdB
1 comentário:
Bab-I Ali
é passar por ela e viver o maravilhoso em vez de sobreviver no aritmético.
é adoptar como lema, este que é o dos sábios :
«Se non è vero , è bem trovato»
p.s. a invocação das criticas ao léxico feitas neste extraordinário texto é misturar alhos com bugalhos, não deslustra , mas acida ligeiramente.
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