08 abril 2016

Da contradição

M. C. Escher

- Eu sou um merda!- Gritara Paulo, sem largar o meu rosto.
- Merda sou eu! - Gritara o Tiago. - Sabe o que que eu sou? 
- Merda sou eu! - Insistira Paulo.
- Sabe o que eu sou? Um fracassado. Pronto.
- Merda sou eu!
- Eu sou um merda fracassado. Sou mais merda que você.
Paulo largara meu rosto e agarrara a cabeça de Tiago.
- Eu sou mais merda do que vocês todos!
- Porquê?
- Porque eu era melhor do que vocês todos. Eu era o melhor de todos! Pra vocês chegarem a merda, não precisou muito. Eu, sim, tive que cair. Eu é que sou mais merda. 

Luís Fernando Veríssimo (in O Clube dos Anjos, pg. 35)


(...) e as igrejas, as lojas, os homens, sendo por toda a parte iguais, não vale a pena partir para ir apenas e em definitivo, sentir a melancolia infinita que inspiram as multidões estranhas». 

Eça de Queiroz (in Correspondência, carta à Condessa de Ficalho, 1885).

***

Agora ando nisto: pego em frases ou pensamentos aparentemente desligados entre si e tento encontrar-lhes algo que os junte.  Não faço isto como auto-flagelação do tempo que ainda é pascal, mas como treino mental cujo resultado interessa a alguns que me apreciam, a outros que tentam encontrar uma brecha por onde introduzir um lança amavelmente crítica.

Gosto de Luís Fernando Veríssimo, escritor brasileiro que é filho de Erico Veríssimo, e de quem li algumas obras, nomeadamente a referida acima. Gosto ainda mais do Eça, de quem li tudo, parece-me. O que têm as citações em comum, para além de serem a criação de dois grandes escritores? A expectativa, que o dicionário refere como esperança fundada em promessas ou probabilidades e o tombo gerado por essa expectativa. Ou, talvez melhor, a contradição, que é uma forma de expectativa (frustrada). A queda decorrente é mais um lugar-comum para enfeitar um blog de criatividade reduzida à 6ªf. Bastava-nos, para isso, a sabedoria popular do quanto mais alto se sobe maior é a queda

Paulo é mais merda do que todos, porque era o único que não era merda. Há aqui uma expectativa de sucesso que não se verifica e, nesse sentido, a derrota é maior. Se somos os melhores de todos como nos podemos tornar no mais merdoso de todos? É a expectativa - a contradição. Eça sente e melancolia que inspiram as multidões estranhas. Numa turba não é suposto encontrar-se a melancolia, porque há movimento, agitação, braços que nos tocam, rostos que nos fitam, movimentos que nos impedem de ficar quietos e de sentir a felicidade de estarmos tristes. Há uma expectativa de elevação do contentamento, não a possibilidade de nos sentirmos abatidos por uma multidão estranha. É a queda  - a contradição.  

A contradição faz tudo por nós: tem uma dimensão pedagógica, pois põe Paulo no sítio onde ele deve estar, que é no lugar do mais merdoso onde ele nunca se veria; tem uma dimensão de encanto, que nos permite sentirmo-nos melancólicos onde deveria haver lugar para o ruído e a alegria. Tem, por fim, uma dimensão de certeza surpreendente: toda a pessoa extrovertida precisa da solidão e toda a pessoa introvertida ficaria louca aqui, na Cartuxa (Padre Isidoro, in O Segredo da Cartuxa).  

JdB

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