Dos melhores filmes desta temporada é «MANCHESTER BY THE SEA»(1), premiado com os dois Óscares para Melhor Actor Principal e Melhor Argumento Original. Mal parece americano, tal o tom intimista, as personagens subtis e intensas, a comunicação com imensos silêncios. Silêncios em todos os matizes: dos cúmplices aos opressivos, passando pelos espirituais, os sábios, os reflexivos, os expiadores, os inquisitivos, os provocadores, os enigmáticos, os que não toleram a vulgaridade, mas também os sofridos, os angustiados e os associais.
Uma curiosidade: o mote inicial da trama foi dado por Matt Damon ao amigo dramaturgo Kenneth Lonergan, que atravessava uma fase difícil, pelo que ganharia em ter um novo projecto em mãos. Até se propunha ser MD o realizador. Mas por dificuldade de agenda, quando o projecto arrancou mesmo, Matt acabou por se ficar por co-produtor, afirmando sobre o resultado final: «This is a movie that will stay with people. His characters are so deeply and richly drawn, with such great detail, that you believe in them.»
Lee, o protagonista primorosamente encarnado pelo actor Casey Affleck (mereceu o Óscar), surge-nos sorumbático, psicologicamente entrincheirado num casulo desesperante. Alheado da realidade, é um ausente. Desligou-se dos sabores, das cores, dos cheiros, da musicalidade da vida, arrastando um corpo que terá deixado fugir a alma.
Porém, à medida que o passado é revelado, percebemos que já fora o oposto, à parte da tendência para a copofonia.
Tudo mudara, quando uma terrível desgraça lhe reduziu a vida a cinzas, por dentro e por fora. A dor lancinante congelou-lhe a alma e petrificou-o, em todos os aspectos. Desistiu de viver e abandonou a simpática vila de Manchester (Nova Inglaterra, nos EUA). Foram os polícias que o impediram de se precipitar no suicídio, quando teve ir prestar declarações à esquadra do bairro. Ele que esperava uma punição exemplar, teve antes de se contentar com a compaixão e o bom senso das autoridades a destoarem do sentimento de culpa que o devorava. Dilacerado e desesperado, a bondade alheia só lhe adensava o sentimento de miséria e de ser miserável. Dramático o tempo recusar-se a recuar... pois aquele seu horrendo descuido levara-lhe, para sempre, quem mais gostava.
Desde então, aguentava o dia-a-dia sem gosto, nem paciência, exilado numa cidade desengraçada. Trancado no círculo vicioso dos antipáticos e quezilentos, os problemas multiplicavam-se como cogumelos. Até tem dificuldade em perceber que determinada cliente queria dar-lhe uma gorjeta, apesar de a ter ouvido confidenciar a uma amiga estar apaixonada por ele. Só que nada o fazia vibrar.
Nisto, quebra-se mais um elo com a morte prematura do irmão protector, vitimado por uma doença grave. Em testamento, o irmão lança-lhe o desafio mais difícil, mas mais regenerador: um novo laço afectivo com a responsabilidade da paternidade – confia-lhe a custódia do sobrinho. Felizmente, tivera a sensatez de não o prevenir. Parecia provocação, pois Lee quase perdera o contacto com o miúdo, desde que decidira abandonar Manchester by the Sea. Em tempos idos, divertira-se imenso com aquela criança, mas por muitas e boas razões, agora, achava-se impreparado para adoptar um liceal espigado e irreverente, com uma lata descomunal e vontade de gozar a adolescência, recusando sair da pequena vila à beira-mar, onde o tio já não conseguia viver. Começavam desencontrados.
A rotina robótica de Lee vê-se abalada nos alicerces, qual terramoto benigno. Aos poucos, no meio de tropeços e mal-entendidos, destreinado do convívio humano, esforça-se por retomar a normalidade de uma vida de família. Principia o degelo. Sob a couraça de aço insensível, aquele tio deixa adivinhar um coração meigo e generoso, mas em ferida. Claro que se exprime desajeitadamente, protegendo-se nos longos silêncios, embora se sujeite a tudo para tentar dar o melhor ao e pelo sobrinho. Resulta num aselha amoroso e incansável. Obviamente, não abunda em pedagogia, apesar de nunca lhe faltar a melhor das boas vontades.
A trama avança entre o presente e constantes flash-backs, bem encaixados no fio da narrativa, que culmina no encontro fortuito entre Lee e a ex-mulher – Randi. Esta mostra-lhe o recém-nascido no carrinho, fruto da nova relação. Entrecortada entre soluços, pede-lhe desculpa pelas acusações tremendas logo após a tal noite trágica. Assume continuar destroçada, tal como ele e, em choro convulsivo, declara que o ama. As lágrimas irrompem do coração desfeito da mulher e mãe arrependida até ao tutano. Também a ela lhe pesa horrivelmente o passado e quer dizer-lho, pois sabe que partilham o mesmo sofrimento. Randi deixa antever o desgosto por já não conseguir refazer a vida com o seu amado. Confessar tudo isto permitia fazer alguma justiça a Lee e oferecer-lhe o consolo da sintonia mais custosa – na agonia. Sob a capa de uma nova família, afinal, também Randi suportava mal o dia-a-dia, pelos mesmos motivos, ao mesmo ritmo cardíaco e com as mesmas lacunas afectivas. Nisto, continuavam lado-a-lado, intrinsecamente ligados.
Lee – demasiado habituado a sofrer sozinho, incompreendido – tinha desaprendido o choro e não lhe ocorria partilhar a sua dor dantesca com a amada. Sem querer esclarecer nada, numa precipitação delicada, despede-se em acelerado. Desde há anos que prescindira de esclarecer, de desabafar, de ser consolado. Talvez nem se achasse merecedor de consolo. Acreditava que o tempo das palavras e das alegrias se tinha extinguido, para ele.
Percebemos quanto a condição de Lee, votada ao silêncio por opção (e alguma incapacidade), lembrava vagamente a exigência das clausuras monásticas. Percebemos também que um filme centrado num homem que parecia incapaz de amar é, sobretudo, sobre o amor mais fundo e autêntico, o único capaz de arrebatar aquele homem desfeito. Descobrimos um amor conjugal que, embora já sem vida comum, é proclamado alto e bom som, quando dito com a verdade com que Randi o explicita e Lee o silencia. À sua maneira, também Lee tinha declarado o amor intocado, na tarde passada no hospital, aquando do óbito do irmão. Ao elencar as pessoas a quem teria de ser comunicada a notícia fatídica, lembrou a mulher. E baralhou os amigos, que só lhe conheciam a ex-mulher. Perceberam, depois, que falavam todos da mesma, pois Lee continuava a conjugar Randi no presente do indicativo.
Envolve ainda um amor fraternal e paternal, que fora feliz e caloroso no passado. No presente, balbucia os primeiros passos de um recém-regressado à vida, a quem o sobrinho adolescente interpela impertinentemente, cansado das aselhices do tio no convívio humano: «Uncle Lee, are you fundamentally unsound?».
Sem pretender ser uma tese sobre dor e soluções possíveis, «Manchester by the Sea» é a prova de que as mensagens ditas pelo avesso e através do silêncio passam lindamente. Como apostas ganhas: a da subtileza é garantida. Nos valores comparativos: se, já em tempos remotos e bem menos barulhentos, a palavra não passava de prata, enquanto calar valia ouro, na nossa época, empanturrada de soundbites, a cotação do silêncio só pode ter disparado. Não menos que diamante. Filme imperdível, mas a precisar da disposição certa.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_____________(1) FICHA TÉCNICA
Título original: MANCHESTER BY THE SEA
Título traduzido em Portugal: MANCHESTER BY THE SEA
Realização: Kenneth Lonergan
Argumento: Kenneth Lonergan (Óscar)
Produzido por: Matt Damon, Chris Moore, Lauren Beck, Kimberley Steward e Kevin Walsh
Fotografia: Jody Lee Lipes
Banda Sonora: Leslie Barber
Duração: 2h17 (137 min.)
Ano: 2016
País: EUA
Elenco: Casey Affleck (Lee) - Óscar Melhor Actor, Michelle Williams (Randi, a mulher de Lee), Kyle Chandler (o irmão de Lee), Lucas Hedges (o sobrinho Patrick).
Local das filmagens: EUA: Lynn, Manchester-by-the-Sea (Massachusetts), hospital de Beverly
Prémios: 2 Óscares, 2 Baftas (nas mesmas categorias dos Óscares), 1 Globo de Ouro, etc.
Site oficial: manchesterbytheseathemovie.com
https://filmspot.pt/trailer/manchester-by-the-sea-334541/
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