13 março 2017

Dos olhos e do Lindoso

- Você sabe, aquela ideia dos jornais taparem os olhos das pessoas para que elas não sejam reconhecidas é ridícula. Acha que o Cavaco Silva só reconhecido pelos olhos, e não pela boca? Ou o António Costa com aquela cor indiana? Ou o Tolstoy e aquela barba? Além disso, não sei se você sabe que, no que se refere ao contacto com os outros, a visão é um sentido difícil de interpretar. Ou seja, quando alguém olha para nós nunca sabemos exactamente que olhar é aquele.... Você está a ouvir alguma coisa do que eu estou a dizer, António Bernardo?

António Bernardo sobressaltou-se, mas não tirou as mãos do livro que folheava naquele momento. Há muito que perseguia aquela Resenha Histórica das Famílias Nobres do Alto Lindoso, com profusas ilustrações do autor, que encontrara numa oportunidade fantástica num alfarrabista em mudança de colecção. 

- Estou a ouvir tudo, Matilde. Os olhos, o Cavaco, o Costa e o russo. 

- Há essa coisa da iridologia, uma técnica que permite ver doenças nas pessoas só de olhar para a íris. Mas eu falo de um nível diferente. No fundo, olhar para alguém e perceber o que traduz aquele olhar: raiva, desejo, simplicidade, compaixão. Não lhe descortinar o fígado, mas adivinhar-lhe o momento. Eu acho que sou muito sensível aos olhos de uma pessoa, estou sempre a detectar sinais.

- Acho isso fantástico, Matilde. Eu lembro-me de falarmos nisso quando casámos e você achou que o sacristão tinha olhos de desdém. Eu só via olhos castanhos, mas você via-lhes desdém. 

- Tem de andar mais para trás, António Bernardo. Foram os seus olhos que me perderam naquele cocktail da tia Mariazinha, quando nos conhecemos. Vi-o no jardim e percebi que estava agarrada como uma drogada; os seus olhos revelavam muito do que vim a conhecer e que tanto me atraiu... Riram para mim, percebe?

António Bernardo afagou de novo o livro, mirando-o por todos os lados: estava encadernado com rigor, perícia, gosto, cabedal e ouro. Olhou pela janela aberta da sala e tentou o impossível: sentar virtualmente na sua sala as famílias nobres do Alto Lindoso, como se uma aristocracia de antanho pudesse estar ali com ele, a falar dos sucessos e das conquistas, da fé e das caçadas, da voragem expansionista que estimula e atemoriza; uma conversa aprazível, pares entre pares, sem que a presença de uma televisão, de um aquecedor a óleo ou de um cachimbo estilizado lhes tolhesse o discurso por se perceberem uma nota dissonante. 

Não conseguiu ver ninguém, a não ser a Clara, sua colega no escritório: uma rapariga bonita, da sua idade, jovem advogada que se formara com uma nota fantástica num faculdade desafiante. António Bernardo escondera-lhe o seu casamento que atravessava um ligeiríssimo momento rotineiro, apesar do amor existente. Clara era alta, magra, de feições correctas, vinda de Germil (Ponte da Barca, Lindoso). Acima de tudo adivinhava-lhe os pensamentos olhando-o profundamente nos olhos:

-  Gostavas de beijar-me, António Bernardo? Ou de mais alguma coisa, já agora? Porque é isso que dizem os teus olhos... 

E António Bernardo sorria e beijava-a de olhos muito abertos, para que a Clara, nascida no Lindoso, lhe visse a alma, o desejo ou talvez, quem sabe, o remorso pela traição à Matilde, a mulher de quem ele gostava e para quem os olhos não tinham supostamente segredo.

- Estás triste, António Bernardo? Os teus olhos não enganam...

António Bernardo pousou o livro, deitando um último olhar a uma das profusas ilustrações do livro, fixando o olhar num senhor antigo, afagando um podengo à lareira. Olhou para a Matilde e quis esquecer a Clara, a elegância da Clara, a clarividência da Clara (uma associação onde encontrava um presságio curiosos...). Fixou os olhos em Matilde que, sorridente, lhe devolveu o olhar:

- Não me faça esses olhos doces, António Bernardo, de cão triste que quer um afago e cinco minutos de atenção. Já o conheço tão bem... Esses olhos nunca me enganaram. Quer ir beber um chá para se animar?

António Bernardo levantou-se e agarrou Matilde pela cintura. Levantou-a e sentou-a nas costas de um sofá. Depois, olhando muito para ela, beijou-a ardentemente, sensualmente, com uma voracidade inaudita. Afagou-a como se afaga uma fato novo ou um livro raro - com sensibilidade e paixão. Desejou-a mais do que nunca e disse-lho. Um desejo carnal, quase animal, carregado também de um amor que ele conseguia dividir com a Clara (Germil, Lindoso). No fim, deitados os dois no sofá, semi-vestidos e ofegantes, sorriram um para o outro.

- O que lhe dizem os meus olhos agora, Matilde?

JdB     

         

1 comentário:

Anónimo disse...

excelente conto da Vida

Acerca de mim

Arquivo do blogue