A linguagem gestual permite acompanhar a comunicação daquilo que a fala não alcança a não ser intermitentemente, isto é o silêncio. Ora, o silêncio, do ponto de vista retórico, pode ser um contexto de intensificação da mensagem sobretudo se ela intencionar um cariz mais afetivo. Diz-se de alguns silêncios serem eles eloquentes. Mais ainda quando um gesto os complementa ou mais completamente os exprime. Uma linguagem exclusivamente gestual, como a dos surdos-mudos, opera em silêncio nisso se diferenciando da fala que o rompe. Não totalmente, no entanto, uma vez que a fala é toda ela feita também de silêncios intercalares que é aliás o que lhe permite ser ouvida. A questão mais relevante aqui é: como é que aquele que ouve pode beneficiar do "conhecimento" do silêncio e do corpo que é próprio ao surdo, de modo a nele aprender a parte pulsional do silêncio e da voz?
O tempo da receção vive-se antes de mais no silêncio. Acolher o dom do amor do Outro passa pelo silêncio da escuta. Ou não fosse o silêncio o pai da palavra, como dizia Domingos de Gusmão. O místico Jean Tauler, evocando o "Dum medium silentium" da liturgia, escreve: «É no meio do silêncio, no momento em que todas as coisas mergulham no maior silêncio, em que o verdadeiro silêncio reina, que se ouve o Verbo, porque se queres que Deus fale, é preciso calares-te: para que ele entre, todas as coisas devem sair». Receber a palavra não é receber uma mensagem a transmitir, é reconhecer esta palavra num corpo, como palavra da vida. É pelo corpo que passa a receção: não há palavra sem interação. Não há praxis enunciativa sem um corpo que responde a outro corpo. Mesmo que seja virtual: afinal, pensar, recordar, são operações virtuais, não há traços visíveis que as colham, ao contrário da escrita.
O texto de Marcos diz-nos que o gesto de dom tecido na verdade do silêncio é um mais pregnante do que qualquer outro, calculista, dominador, masculino. Como anunciar aquele que nos tocou sem pronunciar uma palavra só? Estando Jesus em Betânia, à mesa, chegou uma certa mulher que trazia um frasco de alabastro, com perfume de nardo puro de alto preço; partindo o frasco, derramou o perfume sobre a cabeça de Jesus (Mc 14,3). Uma mulher coloca um gesto em silêncio: quebra um frasco de perfume e derrama-o na cabeça de Jesus. Gesto que os discípulos não entendem. Jesus assinala a distância entre o gesto e o efeito que criou quando lido e interpretado. As palavras dos discípulos não entendem a perda senão em termos de descodificação. Jesus dirá que ela «fez uma boa obra». Ela não perfuma o corpo morto, mas um corpo à mesa. «Em qualquer parte do mundo onde for proclamado o Evangelho, há-de contar-se também, em sua memória, o que ela fez» (Mc 14,9).
O seu gesto é transformado em palavra de anúncio. O perfume derramado transforma as aparências e aquilo que se diz delas, abrindo um outro espaço. O vaso quebrado assinala a dissociação entre as palavras e as coisas (as aparências) em que diz algo diferente da relação ao outro: este corpo vivo como "coisa" visível não deve ser tido por aquilo que parece ser, transporta um outro tempo e um outro espaço nele: «O filho do Homem será entregue, sofrerá, morrerá e ressuscitará ao terceiro dia». O frasco partido rasga as aparências e faz intervir uma palavra que vem de algures, do fundo das Escrituras. A unção pode ser vista como um gesto colocado sobre o corpo: um corpo morto pede que sobre ele se coloquem gestos de embalsamento. Este gesto é uma porta que abre para um corpo a vir, inscrevendo nas margens do visível o invisível da vida e da morte. O gesto da mulher adverte para a ilusão de poder absoluto sobre o mundo, sobre si e o outro.
A palavra nasce do silêncio. O silêncio da mulher é um silêncio prenhe: o da palavra silenciosa, da palavra do corpo que fala. Esta mulher fala por gestos, não por palavras: prefigura o triunfo da morte. Pode este perfume útil para a conservação do corpo morto servir para a conservação da palavra? De que fala esta fratura do vaso senão do ato de proclamação e da economia, dom do amor que só na brisa ligeira se percebe - que é discreto, silencioso - e nos leva a desconfiar da impostura da língua e dos grandes gestos. O dom da mulher passa por um perfume evanescente que passa numa brisa ligeira e é o seu gesto de derramar este perfume que Jesus associa ao anúncio do evangelho.
Jesus não fala, quando se ajoelha diante dos discípulos para lhes lavar os pés. O seu ato vale pela palavra: O seu ato faz corpo com a sua palavra ou a sua palavra faz corpo com o seu ato. O seu ato é palavra. Deus é percetível como um perfume quando o confessamos e celebramos: "Respire in te paululum (Confissões, XIII). «Eis onde estás! Respiro um pouco em ti quando derramo sobre a minha alma num grito de alegria em que ressoam ares de festa celebrada» (Agostinho).
José Augusto Mourão
In "Didaskalia", vol. 39, fasc. I, 2009
Publicado em 22.05.2017
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