Neste ano histórico do centenário das aparições em Fátima, é curioso revisitar os acontecimentos do século passado e redescobrir na História ecos claros da mensagem legada aos três pastorinhos, há cem anos, apesar de parecerem demasiado novos, demasiado pobres e demasiado arredados dos centros nevrálgicos onde “tudo” aconteceria.
Num sumo exagero, estes mensageiros vinham do povoado mais remoto e insignificante de um país pequeno e algo periférico, como era Portugal. Para adensar o paradoxo, que quase roçava a caricatura: dois dos videntes morreram precocemente (1919 e 1920) enquanto a mais velha recolheu à clausura do convento, com proibição de divulgar a mensagem de Fátima. Portanto, o voto de silêncio venceu em toda a linha, indo ao encontro do desejo do anti-clerical Administrador do Concelho de Ourém de calar os pastorinhos. Em 3 anos, tinham-se eclipsado, serenamente.
Então porque não pararam as multidões de acorrer a Fátima? Porque aumentava a devoção popular, com reservas da hierarquia da Igreja e a hostilidade das autoridades civis? Porque foi restaurada, com tanta rapidez, a primeira capela destruída no atentado de 6 de Março de 1922? Porque nunca faltaram dádivas generosas e voluntariado, quando o dinheiro rareava num país depauperado, desde o tempo das Guerras napoleónicas, a que se somaram: a guerra civil, a rotação desenfreada de governos fracos e despesistas, o ambiente de guerrilha da I República?
Sobretudo no início, houve um desencontro abissal entre Fátima e as autoridades/elites. Provocava desconforto e até aversão numa camada mais intelectualizada e cerebral, que se escandalizava com a piedade crua de Fátima, imprevisível, fora dos cânones e desinteressada do politicamente correcto. Ainda hoje subsistem resquícios dessa demarcação, como se representasse um atentado à razão, quando constitui apenas um desafio (abissal, convenhamos) aos condicionalismos da razão. Claro que extrapola as concepções humanas. Basta lembrar a incompreensível escolha dos videntes, do local inacessível, da data, etc. Mais: Fátima não é dogma, sendo a sua crença facultativa e perfeitamente legítimas para um católico/cristão eventuais reservas ou objecções.
Retomando o tema central: há múltiplas ligações de Fátima às biografias dos Papas do século XX. A referência sumária a algumas delas desdobra-se por dois gins, tal a quantidade. Este elenco apoia-se no manancial de dados publicados no conjunto de artigos da autoria do professor do Técnico José Maria André (JMA) (1), a quem agradeço o precioso contributo. As “coincidências” seguem por ordem cronológica:
A 30 de Julho de 1916, o Papa que viveu a I Guerra, Bento XV, quis reunir-se com as crianças de Roma –– encomendando-lhes a oração pela paz no mundo. Considerou-as a melhor “cunha” junto do céu, num gesto inédito de valorizar os mais novos numa sociedade que só reparava neles quando começavam a aproximar-se da idade adulta. Lançou também uma campanha de recolha de patrocínios norte-americanos para socorrer as crianças vítimas da Guerra na zona mais encarniçada dos combates, na Bélgica. Dedicou-lhes ainda 2 das suas encíclicas do pós-guerra (1919 e 1920). No ano de 1916, noutra ponta da Europa, tiveram lugar as três aparições do Anjo aos pastorinhos. Com apenas 7, 9 e 10 anos eram escolhidos para transmitir aos crescidos e às gerações futuras a mensagem de paz e de conversão do Céu.
Exactamente, a 13 de Maio de 1917, o Papa Bento XV ordenava Bispo, na Capela Sistina, quem viria a ser o Papa da Segunda Guerra Mundial – Pio XII.
De 1917 até 20 de Fevereiro de 1920, depois de ver e ouvir a Senhora mais branca que o sol, Jacinta ofereceu a vida pelo «homem vestido de branco», sem ter a menor ideia de quem viria a ser. Bastara tê-lo visto na prefiguração dantesca mostrada a 13 de Julho, numa antevisão do sofrimento da Igreja, que ficaria resguardada na parte mais secreta (a terceira) do «segredo de Fátima». Resolvera doar a sua curta vida no escuro, sem o menor consolo, pois só a 18 de Maio de 1920, meses depois da sua morte, nascia o desconhecido. Viria a ser o Papa João Paulo II, reconhecido pela Irmã Lúcia como a figura da aparição de 1917, logo que se deu o atentado de 13 de Maio de 1981. Três curiosidades:
- quem sabe se foram os frutos da oração generosa de Jacinta a melhorar radicalmente o desfecho de uma morte certa, mostrada na visão de 1917 e garantida pela pontaria certeira do homicida turco? O Papa atribuiu o milagre à intercessão de Maria.
- Com a sua originalidade desconcertante, S.João Paulo II resolveu oferecer ao Santuário de Fátima a bala extraída da cirurgia. Em Portugal, vingou a ideia de a associar à Imagem. Para rematar o insólito: o projéctil encaixou na perfeição num orifício descoberto na base da coroa, como se fosse esperado. Bastou colá-lo.
- A última vidente de Fátima morreu a 13 de Fevereiro de 2005 e o Papa João Paulo II logo a 2 de Abril do mesmo ano, outra vez com uma distância de poucos meses, mantendo uma relação estreita com a biografia dos pastorinhos.
Retrato
de Santa Jacinta de Jesus Marto
Em meados de 1938 (ou logo no ano anterior), a Irmã Lúcia vislumbrou nos céus da Península Ibérica os sinais que Nossa Senhora preanunciara, em 1917, sobre a possibilidade de deflagrar novo conflito, mais feroz que o de 1914-1918, se o mundo não se convertesse. Assemelhava-se, vagamente, a uma aurora boreal. Segundo escreveu: avisou as suas superioras do significado daquele sinal e já não foi apanhada de surpresa quando a Segunda Guerra Mundial teve início, em Setembro de 1939.
Em 1950, a dias da proclamação do dogma da Assunção de Maria em corpo e alma ao céu, Pio XII viu o milagre do sol, no Vaticano. Entre 30 de Outubro e 8 de Novembro, repetiu-se a dança do sol, por 4 vezes, à sua vista.
Ao descobrir a história das aparições em Fátima, percebeu que era a réplica do fenómeno presenciado na Cova de Iria, a 13 de Outubro de 1917, por uma multidão de c. 70.000 pessoas. Segundo um artigo muito recente de JMA, há também notícias (Agência Ecclesia) de um encontro havido entre Pio XII e a Irmã Lúcia, a quem o Papa deu ordem para transcrever as mensagens recebidas de Nossa Senhora. Foi o primeiro pontífice a reconhecer oficialmente a credibilidade das aparições.
Em 1952, a imagem peregrina da Senhora de Fátima foi recebida, pela primeira vez, na Sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. A segunda visita à ONU ocorreu no passado dia 12 de Maio, onde ocupou um lugar na fila VIP. A tabuleta azul destinada às altas individualidades indicava sumariamente «reserved», pois era uma presença auto-explicativa:
-->
O
lugar de Nossa Senhora situa-se na linha das personalidades da mesa de presidência, virada para a audiência.
No ecrã está a imagem que costuma
preceder o anúncio dos oradores principais/dos convidados de honra da sessão.
No Sábado 13 de Maio de 1967, Paulo VI presidiu às celebrações do cinquentenário das aparições de Fátima. Assim confirmava a validade e o alcance histórico daquela mensagem mariana, crivada de evocações à Guerra Fria, em concreto ao avanço imparável do comunismo e da ameaça nuclear. Numa mensagem dramática durante a homilia, vinha à Cova de Iria implorar pela paz:
«Dois motivos principais tornam, por isso, grave esta situação histórica da humanidade: ela possui um grande arsenal de armas terrivelmente mortíferas, mas o progresso moral não iguala o progresso científico e técnico. Além disso, grande parte da humanidade encontra-se ainda em estado de indigência e de fome, ao mesmo tempo que nela se acha tão desperta a consciência inquieta das suas necessidades e do bem-estar dos outros. É por este motivo que dizemos estar o mundo em perigo. Por este motivo, viemos Nós aos pés da Rainha da paz a pedir-lhe a paz, dom que só Deus pode dar.
Sim, a paz é dom de Deus, que supõe a intervenção de uma acção do mesmo Deus, acção extremamente boa, misericordiosa e misteriosa. Mas, nem sempre é dom miraculoso; é dom que opera os seus prodígios no segredo dos corações dos homens; dom que, por isso, tem necessidade da livre aceitação, depois de se ter dirigido ao céu, dirige-se aos homens de todo o mundo: Homens, dizemos neste momento singular, procurai ser dignos do dom divino da paz. Homens, sede homens. Homens, sede bons, sede cordatos, abri-vos à consideração do bem total do mundo. (…).
Vede, Filhos e Irmãos, que aqui Nos escutais, como o quadro do mundo e dos seus destinos se apresenta aqui imenso e dramático. É o quadro que Nossa Senhora abre aos Nossos olhos, o quadro que contemplamos com os olhos aterrorizados, mas sempre confiantes (…) seguindo a admoestação que a própria Nossa Senhora nos deu: a da oração e da penitência; e, por isso, queira Deus que este quadro do mundo nunca mais venha a registar lutas, tragédia e catástrofes, mas sim as conquistas do amor e as vitórias da paz.»
O próximo gin remontará aos episódios mais directamente relacionados com o derrube do comunismo, sem derramamento de sangue.
Mas impõe-se saltar esta sequência para os dias de hoje: no Sábado 13 de Maio de 2017, no epicentro do conflito mais sangrento da actualidade, os sírios puderam retomar a procissão com a imagem da Virgem de Fátima! Depois de um interregno de 5 anos, estavam comovidos por voltar a percorrer as ruas de Alepo com a Rainha da Paz, a quem consagraram a cidade martirizada: «Muitos de nós choramos porque, depois de seis anos, pudemos voltar a organizar a procissão pelas ruas de Alepo, sem medo dos mísseis. Com emoção, acolhemos Nossa Senhora de Fátima em Alepo, com a esperança de que a Virgem Maria rogará pela paz em toda a Síria».
São impressionantes e tocantes os caminhos da Mãe da humanidade para se tornar presente junto dos mais desprotegidos. Como prometeu em Fátima, não se cansa de ir aos lugares obscuros e assustadores de onde todos tentam fugir. Mantém-se, por isso, uma viajante em contracorrente, porque assim decidiu viver a sua maternidade até ao fim dos tempos.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) Conjunto de artigos publicados a partir de Fátima, logo após o dia 13, em jornais e blogs anglo-portugueses (ABC Portuguese Canadian Newspaper, Correio dos Açores, Spe Deus, Clarim, O Alcoa, etc.).
Sequência dos títulos: O homem vestido de branco; O milagre do sol em Roma; Ensinar os Papas (ref. a Lúcia); Vivi distraído?...; Os protestantes; Impressões de Fátima; Ofertas do Papa a Portugal; «Não vês tanta estrada?...»; «Quereis oferecer-vos a Deus?...»; Nossa Senhora de Fátima na ONU; «As mulheres sabem tudo!»; Mais real que a pedra.
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