07 junho 2017

Vai um gin do Peter’s?

Na continuação do gin de 24 de Maio, sobre as ligações dos Papas e da história dos século XX e XXI às aparições de Fátima, retoma-se a viagem no tempo recuando ao Papa que sucedeu a Paulo VI, conhecido pelo seu mini-pontificado: 

Em 1977, um ano antes de ser sagrado como Papa João Paulo I, o então Patriarca de Veneza peregrinou até Fátima e teve uma longuíssima conversa com a Irmã Lúcia, no Carmelo de Coimbra, num encontro organizado por Olga de Cadaval (ref. num artigo (1) de José Maria André - http://o-povo.blogspot.pt/2017/05/fatima-2017.html) . Com humor, o secretário do então Cardeal citou-lhe estas palavras sobre a visita à vidente: «Sim, sim, estive com [a Irmã Lúcia]... Ah! esta freirinha bendita pegou-me nas mãos e começou a falar... estas benditas freiras, quando começam a falar, não acabam!» Num artigo que fez publicar na imprensa veneziana, defendeu que a principal missão dos santuários marianos era lembrar o Evangelho.

A 25 de Março de 1984, João Paulo II consagrou a humanidade e, em especial a Rússia, ao Imaculado Coração de Maria, cumprindo à risca os termos indicados por Nossa Senhora, em Fátima, que prometeu conceder um período de paz e o fim do império leninista-marxista, sem guerra. Unido aos bispos de todo o mundo, foi diante da imagem da Cova de Iria, trazida para a Praça de S.Pedro, que o Papa quis consumar a consagração, logo reconhecida pela Irmã Lúcia como tendo cumprido as prescrições recebidas em 1917. Nem um ano depois, começavam as reformas no Kremlin – a «glasnost» e a «perestroika» – que levaram à dissolução pacífica do colosso soviético, ecoando pelos países da Cortina de Ferro como um grito de liberdade. Dias depois da derrocada comunista na Checoslováquia, a 1 de Janeiro de 1990, a multidão imensa reunida na praça Venceslau (Praga) comemorou o fim do domínio russo ao som da Nona de Beethoven! Os estudantes distribuíram folhas-volantes com a letra do Hino da Alegria, em versão checa e alemã, para todos poderem entoar aquele último andamento reconciliador. Tudo se precipitara a partir do fim de Outubro de 1989, pondo em marcha a famosa «Revolução de Veludo», que culminara com a eleição do talentoso escritor e humanista Vaclav Havel como presidente. O lema da revolução, alimentada pelos estudantes e liderada por Havel, parecia inspirado em Fátima: «O amor e a verdade devem vencer a mentira e o ódio». 

A 9 de Maio de 1985, o Presidente dos EUA fez um discurso enigmático na Assembleia da República Portuguesa, onde enalteceu as três criancinhas que pastoreavam o seu rebanho na Loca do Cabeço, no primeiro quartel do século XX. Considerava-os campeões da frente de batalha mais difícil para a América do Norte: com a URSS. Sublinhou ainda o poder superior de Portugal, assente na força espiritual. Mais: disse que contava aprender com os portugueses sobre o poder que fica para a história! Elogiou ainda o seu grande aliado na luta anti-comunista – o Papa polaco. Uma mensagem marcante, mas bastante ignorada: 

«Quando me encontrei com o Papa João Paulo II, no ano passado, no Alasca, agradeci-lhe pela sua vida e pelo seu apostolado. Atrevi-me a sugerir que o exemplo de homens como ele e nas orações de pessoas simples em todo o mundo, pessoas simples como os pastorinhos de Fátima, reside mais poder do que em todos os grandes exércitos e estadistas do mundo. (…) Isto também é algo que os portugueses podem ensinar ao mundo. Porque a grandeza da vossa nação, como a de qualquer nação, reside no vosso povo. Pode ser vista no seu dia-a-dia, nas suas comunidades e vilas, e sobretudo nas igrejas simples que pontuam a vossa terra e que dão testemunho de uma fé que justifica todas as reivindicações de dignidade e liberdade dos homens. Digo-vos que é aqui que está o poder, aqui se encontra a realização final do sentido da vida e do propósito da história e aqui se encontra a fundação para uma ideia revolucionária – a ideia de que os homens têm o direito de determinar o seu próprio destino.»(3)  

A 13 de Maio de 1992, o Núncio Apostólico em Buenos Aires telefonou ao Pe. Bergoglio a pedir-lhe que o fosse esperar ao aeroporto para lhe comunicar, com máxima discrição, que João Paulo II o nomeara bispo. Segunda curiosidade: este dado só saiu a público há dias, no voo de regresso do Papa a Roma, quando a jornalista argentina Elisabetta Piqué o interpelou (2): «Hoje é o centenário da aparição de Nossa Senhora de Fátima, mas é também o aniversário de um acontecimento importante na sua vida, há 25 anos, quando o Núncio lhe disse que seria Bispo Auxiliar...». Francisco assume que só em 2017, aos pés da Imagem, reparara na coincidência: – «As mulheres sabem tudo! Não tinha reparado na coincidência; só ontem, quando rezava diante de Nossa Senhora, me dei conta de que recebi o telefonema do Núncio há 25 anos. Bem. Não sei... exclamei «ena!»... E falei com Nossa Senhora um pouco sobre isto, pedi-lhe perdão pelos meus erros, falei também um pouco dos erros de “casting” nas pessoas que escolhe... – (o Papa voltou a rir) – Foi ontem que me dei conta.»

A 13 de Maio de 2010, foi a vez de Fátima receber o Papa Bento XVI, que confidenciou ao seu antigo aluno, a concelebrar ao seu lado como bispo de Leiria-Fátima, a impressionante força daquele Santuário: «não há nada como Fátima em toda a Igreja Católica no mundo».

Em poucos anos de pontificado, o Papa Francisco já pediu várias vezes para receber a Imagem da Cova de Iria no Vaticano. 

Uma veterana das visitas ao Vaticano, desde os anos 80 do século passado. 

No centenário das aparições, Francisco quis peregrinar até à Cova de Iria para encomendar à Virgem os sofrimentos da humanidade e a homenagear com a mais alta distinção da Santa Sé – a rosa de ouro. Lembrou-nos: «Por Maria, vem-nos essa misericórdia [citando Paulo VI]: – Sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do carinho. Nela vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes (...). Esta dinâmica de justiça e de ternura, de contemplação e de caminho ao encontro dos outros é aquilo que faz d’Ela um modelo eclesial para a evangelização». 

Logo à chegada à Capelinha, na tarde de 12 de Maio de 2017, a deposição da rosa de ouro.

A visita do Papa a Portugal foi o acontecimento mais noticiado do mundo, no período de 12 a 14 de Maio, segundo a empresa Cision, especializada na análise dos media. Envolveu mais de 120.000 meios noticiosos online, em 190 países, para além do mediatismo óbvio em Portugal. No nosso país deu também pretexto à composição de um hino específico, com letra (4) do padre-poeta Tolentino Mendonça e música de João Gil: 


Num flash-back até ao século XV, é premonitória a tela do pintor de Bruges – Petrus Christus (1410-1475), seguidor de Van Dick, a propor a oração do terço. Também aqui Maria aparece numa azinheira, emoldurada por um entrelaçado de ramos nus. Ao longo dos séculos, a apresentação de Nossa Senhora junto à azinheira surge em várias telas, sendo esta a mais expressiva. A copa de hastes forma uma coroa de espinhos, evocativa da paixão que o Bebé ao colo da Mãe irá assumir para salvar o género humano e o reconduzir ao jardim do paraíso. Tornou-se, por isso, a verdadeira árvore da Vida.

«Senhora da árvore seca» (det.) | Petrus Christus | 1462-65 | 
Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid, Espanha.  Invulgar a acumulação de cores no manto de Maria,
a frisar a sua missão de medianeira entre o céu (azul)  e a terra (verde), através da Paixão (escarlate).


Na tradição helénica, a azinheira simbolizava desventura, por causa das copas de ramagens verdes, que tornavam os bosques impenetráveis e sombrios, ganhando má reputação. Foi o cristianismo que a reabilitou, pelo seu papel na salvação da humanidade. Conta-se que, logo após a condenação de Cristo à morte, todas as árvores se recusaram a oferecer a sua madeira para fabricar a cruz. Aos golpes dos lenhadores, desfaziam-se em pedaços, sabotando o trabalho de marcenaria. Só a azinheira teria pressentido a importância da crucifixão para redimir o mundo e o libertar do grilhão da morte eterna. Por isso, a escolha da azinheira para aparecer às três crianças, em 1917, reforça o sentido salvífico da mensagem de Maria, colaborando com o Filho. 

Porém, a alusão mais directa à mensagem de Fátima reside nas 15 letras suspensas dos ramos secos da azinheira do pintor flamengo, a enunciar as 150 Avé-Marias que compõem o Rosário. A tela de P.Christus (1462-65), exposta no fantástico Museu Thyssen de Madrid, foi visionária para a época, antecipando-se em 10 anos a difusão da oração do rosário na Europa (1475). 

Curiosas as intercepções da história, como esta que aproxima um discípulo de Van Dick de uma mensagem de séculos posteriores. O segredo estará na partilha da mesma devoção mariana. Talvez o poema do hino composto para acolher Francisco, em Portugal, explique esta afinidade que aguenta incólume a passagem do tempo. Aliás, reforça-a: «Sei que Maria nos abre caminhos/ a certeza de / não estarmos sozinhos / Quando pesava a noite sem fim / seu olhar / acendeu Deus em mim (…) Com Maria, tu sabes que estás / No caminho da esperança e da paz.»

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
__________________
(1)    O terceiro do conjunto da autoria de JMA, intitulado  «Ensinar os Papas».
(2) Citado no artigo de José Maria André – «As mulheres sabem tudo!» disponível em http://o-povo.blogspot.pt/2017/05/fatima-2017.html ou http://spedeus.blogspot.pt/2017/05/as-mulheres-sabem-tudo.html .
(3)   A história do discurso foi revelada pelo historiador Paul Kengor, na revista Crisis, recordando que o principal redactor da Casa Branca era Tony Dolan – católico conhecedor das aparições. Dolan tinha-lhe dito que «[Reagan] sabia de Fátima [que] era uma parte importante do movimento anticomunista. (…) e, para além disso, ele tinha uma vertente mística muito forte.». Aliás, este interesse de Reagan reacendeu-se, em 1987, nos preparativos da sua visita ao Vaticano. Foi o embaixador dos EUA junto da Santa Sé, Frank Shakespeare (que tinha estado colocado em Lisboa), quem o “briefou”, confirmando a Kengor: «Falei com Reagan sobre Fátima na viagem, tanto no avião como no carro. E ele escutou com muita, muita atenção – (…) estava mesmo muito interessado.»
(4)  Letra:

«Deus em mim

Somos apenas um traço cinzento
Estes passos levados /pelo vento
Ou haverá quem sabe / uma razão
Mais além deste muro / um clarão

Deus em mim [bis]

Com Maria, onde quer que vás
Sê peregrino da esperança e da paz
Com Maria, tu sabes que estás
No caminho da esperança e da paz

Sei que Maria nos abre caminhos
a certeza de / não estarmos sozinhos
Quando pesava a noite sem fim
seu olhar / acendeu Deus em mim

Deus em mim  [bis]

Com Maria, onde quer que vás
Sê peregrino da esperança e da paz
Com Maria, tu sabes que estás
No caminho da esperança e da paz

Deus em mim  [bis]

Haverá nos céus / um segredo
Um amor que nos cure do medo?
A Sua luz te acompanha e sustém
Mesmo se não vês o seu brilho vem»

1 comentário:

Anónimo disse...

Maria Zarco, como é sua marca mais um excelente Gin.
O baptismo desta série é engraçado. Felicito que o imaginou.

Bom resumo de imensa coisa publicada, indicando muito boa cultura.

Acredite que é abençoada.
eao

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