A vida é uma casa com duas portas. Há uns que entram e que têm medo de abrir a segunda porta. Ficam girando, dançando com o tempo, demorando-se na casa. Outros se decidem abrir, por vontade de sua mão, a porta traseira. Foi o que eu fiz, naquele momento. A minha mão volteou o fecho do armário, a minha vida rodeou o abismo.
(Mia Couto)
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Ouvi esta frase pela primeira vez há pouco menos de nove anos. Decidi reproduzi-la aqui porque a fotografia, como o pensamento, fala de portas, de vida - e por maioria de razão de chaves. Como disse ontem a um grupo de gente muito próxima, rodei uma chave semelhante, numa fechadura semelhante, mas nesta porta exacta, há trinta e seis anos. Fi-lo, nesse dia já longínquo, no sentido dextrorsum. Ontem fi-lo no sentido inverso, seguramente pela última vez. De alguma forma estas fechaduras vão contra a lógica do destino: ao fechar esta porta para sempre devia tê-lo feito ao sabor dos ponteiros do relógio, para acompanhar o tempo que não pára, que é um rio sem retrocesso.
Para trás ficam janelas, sacos vazios, armários de portas escancaradas, prateleiras vergadas pelo peso dos livros e paredes atacadas pelo salitre. Fica o eco, se eu quisesse ter gritado; fica o espaço vazio, se eu quisesse ter dançado. Fica a poeira do tempo, das casas fechadas, das preguiças domésticas e dos móveis pesados, da acumulação de inutilidades que já foram utilidades ou que nunca o foram. Mas fica uma porta - aquela que eu fechei ontem pela última vez, por onde entraram pessoas que estão e pessoas que foram, pessoas que entraram deitadas e outras que saíram deitadas, como se esta semelhança dentro da diferença geracional fosse uma metáfora para a vida; entraram pessoas que marcaram a diferença e pessoas cuja existência não ficou gravada. Não ficou nada de mais, porque aquela casa era uma casa igual a tantas outras, onde a História tem a relevância que cada um lhe quer dar.
Fechar uma casa pode ser, como já partilhei, uma tarefa que se cumpre com eficiência ou um acto de encerramento simbólico. Encerra-se um espaço que servirá outros propósitos, mas também se encerra um tempo que foi. Um tempo de tudo, como o são os tempos saudáveis: tempo de riso, de discussão, de luta, de conforto, de debate, de disrupção, de reconciliação. Um tempo de construção, acima de tudo. Talvez o cansaço do corpo pelo cumprimento de uma tarefa esconda o cansaço da alma por uma porta que se fecha para outra realidade. Ontem, ao fechar trinta e seis anos atrás de mim, não sei o que senti. Talvez apenas cansaço físico, porque as minhas memórias - aquelas que me confortam ou entristecem - não residem em casas, mas em espaços. E entre uma casa e um espaço o conjunto intersecção pode existir, mas não ser determinante. Porque este é maior do que aquela.
JdB
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