26 dezembro 2017

Duas Últimas

Sento-me a ver televisão entre um obsceno almoço e o que virá a ser um obsceno jantar. Faço horas para mais uma visita a gente próxima, que me oferecerá peru, doces, vinho, amizade. Rejeito tudo, excepto o que não provoca triglicéridos, porque ainda falta um evento... Faço zapping e cruzo-me com a Música no Coração, um filme que marcou mais do que uma geração e muito mais do que um Natal. A baronesa elegante e rica percebe que, como diria o fado, amar e não ser amado / é cruel desilusão, e dá lugar à ex-noviça de cabelo curto e voz cristalina que enfeitiçou o capitão Von Trapp, militar de carreira e de atitude. O casal inesperado casa, e quando regressam de lua de mel já o Anschluss vergou o povo austríaco ao peso do 3º Reich. 

No festival de Salzburgo o Capitão Von Trapp sobe ao palco para se despedir. Aparentemente segue para Bremerhaven, onde a marinha nazi o espera para funções importantes. No segredo dele, do empresário e de Maria, a ex-noviça de voz clara e cabelo curto, fugirão para a Suiça, para que aquele orgulho não seja manchado pelo opróbrio do serviço ao horror alemão. Entoa Edelweiss, uma música bonita, tocante, transformada em metáfora da resistência ao opressor, uma espécie de hino do verdadeiro austríaco, aquele que não se deixa subjugar.

De voz comovida e titubeante, Von Ttapp canta: Edelweiss, Edelweiss / every morning you great me / small and white / clean and bright / you look happy to see me... O público canta, como se daquela voz saísse um clamor de liberdade e de revolta, como se aquelas vozes fossem mais fortes que todos os exércitos do mundo. Em rodapé, ao ritmo da libertação, as legendas matam toda a poética resistente, mancham de horror todo um coro de liberdade: pé-de-leão, pé-de-leão / todas as manhãs me saúdas / pequeno e brilhante / limpo e branco / pareces estar feliz por me ver ...  

Sou tradutor, mas por vezes uma tradução é um assassinato... Deixo-vos, por isso, com Edelweiss - sem tradução, nem pé-de-leão...

JdB

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