Pouco havia em Celeste que se diferenciasse da generalidade das mulheres. Tinha uma altura média, um beleza corrente, umas mãos equilibradas e de uma elegância quase corriqueira, um cabelo castanho muito claro que não se destacava por nada. No entanto, era dona de uns olhos azuis claros – claríssimos, mais precisamente – quase como se Deus quisesse que se assemelhassem ao Céu ou se a natureza tivesse olvidado um pouco mais de cor naquela transparência. Eram de uma estranha beleza – talvez pela sua raridade.
Num dia de Março, a tarde punha-se num calor manso enquanto o sol se escondia por trás dos prédios ao longe. Celeste cruzou-se no escritório com Ricardo Pires, o novo director financeiro, um profissional alto e esguio com umas mãos nervosas e um olhar irrequieto por trás de uns óculos sem história. Era o primeiro encontro
boa tarde, como tem passado
bem muito obrigada, senhor doutor
e o homem dos números não disfarçou o fascínio por aqueles olhos que eram de uma transparência tal que se poderia ver a alma através deles. A fixação era quase incomodativa, não fosse a Celeste ter sentido um ligeiríssimo aumento do batimento cardíaco, fruto daquelas coisas que a ciência não explica e a experiência chama nomes diferentes.
Alguns meses depois cruzaram-se num centro comercial, ela com um conjunto novo de atoalhados adquiridos em oportunidades imperdíveis, e ele com o Eurico o Presbítero debaixo do braço, numa edição anotada e antiga. Já se conheciam bem e o convite
Posso convidar-te para jantar, Celeste?
Claro, gosto muito
surgiu natural e esperado, como quem não se espanta com o pôr-do-sol ainda que se deixe fascinar por ele.
O Dr. Ricardo Pires revelou-se um conversador nato, culto, com um mundo extenso vivido fora das paredes de um escritório e da secura desinteressante dos gráficos, e citou Herculano
10 anos... Sabes tu, Hermengarda, o que é passar 10 anos amarrado ao próprio cadáver? Sabes tu o que são mil e mil noites consumidas a espreitar em horizonte ilimitado a estrela polar da esperança e, quando no fim, os olhos cansados e gastos se vão cerrar na morte, ver essa estrela reluzir um instante e depois desfechar do céu nas profundezas do nada?
antes de a brindar com um fetuccine de mexilhões que perfumou com um xerez superior e com umas ervas aromáticas numa precisão de alquimista.
Entre adultos pode haver um momento, um instante, um ponto – talvez se possa chamar de não retorno – que separa o afastamento físico e a proximidade. Transposta essa porta - que é um levíssimo roçar de mãos, o contacto dos corpos numa passagem estreita, dois olhares que se fixam na embriaguez de um desejo – não há regresso possível e a expressão
há-de ser o que Deus quiser
é uma frase não descartável no domínio das possibilidades audíveis.
No dia seguinte, Celeste bebericava uma tisana com os olhos postos num folha diferente das oportunidades imperdíveis. Sabes Adília,
e a Adília a abanar a cabeça a garantir que sim, que sabia
há mais para além do sentido vulgar que damos às coisas, das definições a que fomos habituadas ao longo de séculos sem fim. Agarramo-nos a conceitos,
e a Adília num constante vaivém de cabeça, que sim, que sabia
mas nem tudo é assim. O que achei do Dr. Ricardo Pires? Um homem culto, que cozinha como ninguém, que tem um olhar irrequieto e viajante. Um homem à sua maneira sedutor. Mas, na escuridão de uma cama larga e à luz de uma vela ténue, revelou-se. E sabes o que achei?
e a Adília a responder que sim, que continuava a saber
Naquele quarto rico e bem decorado achei-o um homem avaro. Avareza, foi a palavra que me ocorreu. Não a do dinheiro ou dos bens materiais, como aprendemos. A ausência da generosidade física, da retribuição da carícia, do altruísmo sensual. Avareza, Adília. Avareza. Isso também é pecado?
---
* publicado originalmente em 15.03.2010
Sem comentários:
Enviar um comentário