A película dinamarquesa «O CULPADO»(1) é uma sólida candidata ao Óscar do Melhor Filme Estrangeiro. A extrema simplicidade dos cenários, o número mínimo de personagens e a menorização da imagem em favor do som, pareceria um trabalho ao alcance de um estudante. Mas o magnífico argumento, o exímio desempenho do protagonista e da voz feminina principal ou a mestria da realização não deixam dúvidas sobre a qualidade maior deste thriller, em simultâneo, original e profundo. Só por equívoco confundível com uma obra modesta.
A ousada subalternização da imagem resulta na pedra de toque da realização, que arrisca oferecer apenas o essencial. Daí a aposta no órgão sensorial mais fiável, menos permeável a distracções e miragens – o ouvido. De facto, zero de blagues ou de beautiful people, à parte de tiradas ásperas, que só dão vontade de rir por serem inconcebíveis na assistência do 112. Gustav Möller teve a coragem de se despojar de todos os artifícios que animam os filmes da actualidade, viciados em truques de entretenimento, para contar uma história crua e a cru, levando ao limite o «efeito de distanciamento» recomendado por Brecht, glosando a tradição literária russa.
A menção honrosa atribuída a Möller no Festival internacional de Turim – com um título significativo «Gandhi's Glasses Award - Special Mention» – explica bem o patamar elevado a que se guindou o trabalho do realizador, ao conseguir a crueza que melhor serve a liberdade do público, mostrando sem véus enganadores. De certo modo, com mais verdade. Foi justificada nestes termos a tal menção honrosa italiana: «For the delicacy that the director had towards the viewer, avoiding any ostension of physical violence. For the awareness and gesture of courage of the protagonist who, by recognizing his faults, can empathize with the other aggressor. For having used the dialogue as the only cathartic instrument in the resolution of a conflict.»
É nesse ambiente a roçar o desconfortável – tal o seu despojamento – que Möller soma uma segunda proeza: agarrar o espectador do princípio ao fim. É verdade que o argumento se desenrola em contínuo suspense. Mas não é menos verdade que a vida na perspectiva de quem a agarra com ânimo (sem implicar alegria, como era o caso do polícia protagonista) costuma acabar por se revelar surpreendente e imprevisível, mostrando um gigantismo misterioso e incontrolável à semelhança dos ciclos do mar: ora flat na gíria surfista, ora ondulado, ora em maré-viva e tsunamis. Shakespeare também assumiu esse mistério que impregna subtilmente o dia-a-dia, numa cena do Hamlet(2): «There are more things in heaven and earth, Horatio, / Than are dreamt of in your philosophy».
Os 85 minutos de «O CULPADO» situam-se entre o open-space acanhado do call-center da polícia, que assegura o interface com o 112, e um gabinete contíguo de grandes vidraças, que só deixa de fazer efeito aquário quando se correm as gelosias.
Um espaço exíguo é cenário de uma trama profunda, onde cabem os gestos heróicos dos anónimos, “invisíveis” aos olhos da maioria. |
Paredes e mobiliário monocromáticos impõem um branco asséptico e impessoal, que é o cenário perfeito das caras híper controladas dos funcionários fardados. Correctos e contidos como autómatos, entregam-se a comportamentos padronizados, ordeiros mas trancados em scripts pré-definidos. Tudo dentro do previsto. Mas nada mais do que o previsto, como se fosse possível conter a realidade humana, que se espraia à solta, para lá dos muros da super-esquadra telefónica. Talvez pudessem ser facilmente substituíveis por máquinas. Excepto um – o protagonista, que ali passa e ultrapassa (bastante) o turno da noite, retirado do serviço de rua, depois de ser acusado de homicídio. Atrás das linhas telefónicas, está de castigo a aguardar julgamento. E é já no dia seguinte, mas nada que o impeça de mergulhar nas dificuldades que lhe chegam pelo auscultador, às quais reage em modo voluntarista, sem acatar regras que lhe parecem curtas para responder às circunstâncias reais. Por um bem que considera maior, não hesita em atropelá-las, como se estivesse no Sul da Europa, diríamos… No fundo, propunha-se dar primazia a uma justiça aperfeiçoada pela equidade.
No 112, irrompe a história dramática de uma família disfuncional da Dinamarca profunda, quando um ex-presidiário reaparece para raptar a mulher, deixando a filha de uns 4 anos a tomar conta do bebé da casa, mas proibida de entrar no quarto do irmão de berço. Vamos conhecendo os factos de forma entrecortada e algo redutora, ao ritmo dos pedidos de ajuda em sucessivas chamadas lancinantes e telegráficas, que vão abaixo. Portanto, acabamos reduzidos a um contacto telefónico intermitente e ao ângulo de visão daquele polícia, cuja boa vontade o faz incorrer no risco de avaliações e "adivinhações" precipitadas, para inverter um rumo de acontecimentos assustador e em alta velocidade. Começa a luta contra o tempo e contra uma realidade desfocada, que mal se deixa conhecer.
Uma câmara intransigente, quase impiedosa, aponta ao rosto sofrido do polícia em contra-relógio, disposto a tudo para salvar vítimas, que se lhe afiguravam inimputáveis. A ponto de ganhar coragem para confessar, em alta voz, a sua pior transgressão – a mais grave num ser humano e especialmente imprópria num polícia – um assassinato sem atenuantes. Confessou-o em frente aos colegas para aliviar o desespero de uma agressora incapaz de responder pelos seus actos. Afinal, ali estava um que carregava maior culpa! Fora a solução encontrada para tentar salvar a sua pobre interlocutora, que ameaçava soçobrar.
Sabia muito bem que a confissão testemunhada pelos seus pares poderia nem servir para evitar o pior desfecho, do outro lado da linha! Mas não hesitou em fazê-la, por lealdade perante todos os impotentes e inimputáveis da vida, com menos estatuto do que ele para lidarem e contornarem a justiça dos homens. Percebe-se que fora assaltado por uma sede de Verdade. Uma sede que o levou a dar o melhor de si, por compaixão por uma desconhecida, em carência de toda a ordem (desde logo, anímica), completamente dependente dele. Mesmo só lhe conhecendo o nome, visível no ecrã do potente aparelho, não quis falhar a Iben. Menos ainda à filha de Iben, Mathilde, a quem prometera trazer a mãe de volta. Recebeu, por fim, a melhor gratificação, embora já não fosse esperada… Acabara por se dar, sem contrapartidas. Cumprida a missão, aceitou voltar a casa, horas depois do seu turno terminar. Estava esgotado e sabia-se culpado. Mas a golfada de generosidade que o dispusera a surfar tamanha onda, tinha feito dele um gigante… logo que preferiu a verdade, nada mais do que a verdade. Afinal, o maior desafio do ser humano.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta-feira)
______________________________(1) FICHA TÉCNICA:
Título original: Den skyldige (candidato a Óscar)
Título traduzido em Portugal: O CULPADO
Realização: Gustav Möller
Argumento: Gustav Möller e Emil Nygaard Albersten
Duração: 125 min.
Ano: 2018
País: Dinamarca
Elenco:
Jakob Cedergren (o polícia protagonista – Asger Holm)
Jessica Dinnage (voz de Iben, a mulher raptada)
Omar Shargawi (voz do ex-marido e raptor)
Katinka Evers-Jahnsen(voz da filha de Iben – a Mathilde)
Local das filmagens: Interior de call-center da política.
Prémios:
Prémio de Melhor Filme pelo Sundance; TIFF - prémio canadiano de cinema; National Board of Review nos EUA ; 4 prémios no Festival de Cinema de Turim para melhor realizador, actor e ainda o galardão «Gandhi's Glasses Award - Special Mention» atribuído a G.Mölle; 2 prémios no “International Film Festival & Awards Macao” para o realizador e actor principal); prémio de Melhor Realizador nas edições de 2018 dos festivais de Cinema de Washington, Zurique, “Philadelphia Film Festival”, “Rotterdam International Film Festival”, “Seattle International Film Festival”, “Camerimage” e “Baltic Debuts Film Festival”; candidato ao Óscar do Melhor F. Estrangeiro.
OBSERVAÇÕES: n.a.
Trailer:
(2) "Hamlet", Acto 1, Cena 5.
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