21 março 2019

Sobre o destemor

Apanhei a notícia a meio, pelo que não afianço a fiabilidade da reprodução. Aparentemente os títulos de alguns livros estrangeiros estão a ser traduzidos de forma diferente do que já foram. Lembro-me de um exemplo: Three Man in a Boat, de Jerome K. Jerôme, estaria a ser traduzido por Três Homens num Barco, porque as gerações actuais já teriam dificuldade em perceber o título de sempre: Três Homens num Bote. O que é um bote?

Na mesma linha de raciocínio, já não faz sentido cantar-se o Fado das Caldas (letra de Vicente da Camara): quem sabe o significado de milorde aguisalhada?

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Alguém terá dito (e talvez tenha sido um economista, um magnata ou ninguém, que posso ter sonhado) que os tempos de guerra são ideais para se fazerem grandes negócios - ou grandes fortunas. Mas também são um tempo ideal para a criação de uma linguagem própria e datada: obus, artilharia pesada, flanco, furriel, cavilha de granada. No dia em que o mundo for um sucedâneo infindo de tempos de paz, alferes miliciano e varíola serão termos pertencentes ao mesmo léxico, agrupados no mesmo verbete: palavras em desuso ou português arcaico. Acontece o mesmo com as palavras herói, destemor, audácia, só que, neste caso, o arquivo no verbete acima referido é injusto, porque a heroicidade não é monopólio das guerras. Poderá não haver furriéis, mas haverá sempre destemor, pese embora a expressão ter sido colada injustamente ao aspecto físico da situação. Na guerra o corpo conta muito.

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Não tendo passado pela experiência da guerra (embora tenha convivido durante 18 meses com algum vocabulário de guerra) não tendo sido rapaz, jovem, homem dado a murros nem estalos, nem tendo sido posto à prova no que concerne à defesa física de alguém próximo, a ideia do destemor físico diz-me tanto como a baleia de bossa. Sei que existe, imagino que seja importante para o equilíbrio da natureza, mas gosto mais do meu cão, um setter inglês com uma mistura singularmente humana de alegria e necessidade de atenção. E, nessa linha de raciocínio, aprecio outros géneros de destemor claramente subvalorizados no mundo moderno: o destemor de reconhecer erros ou de pedir desculpa, o destemor de sair da zona de conforto, o destemor de reconhecer obsessões, manias incomodativas ou adições, o destemor de pedir ajuda ou uma opinião, o destemor do low profile por convicção (que não por feitio) numa era de evidências.

Em mim há ainda o gosto pela ideia aristotélica, expressa na Ética a Nicómaco, da posição virtuosamente intermédia entre dois excessos: a generosidade como intermédio entre o esbanjamento e a avareza, a coragem como intermédio entre o medo e a audácia. Um gosto que deriva, talvez, de ser uma ideia fora de moda, desfasada num tempo que desdenha o equilíbrio como maçador. 

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Já não há milordes, já não se sabe o que é aguisalhada, um dia não se saberá o que é bote ou varíola. Mas destemor haverá sempre, mesmo em tempo de paz. Talvez sobretudo em tempo de paz.

JdB  

1 comentário:

Anónimo disse...

O que subjaz ao seu escrito é a verdade que que o ignorante ignora que é ignorante.
Como todos os bichos, salvaguarda aquilo é (ou que sente que é) que lhe vai ser útil.
Quando se acabar, temporáriamente, com a dominância dos estúpidos, algo melhorará.
Até vir nova vaga de ignorância.
Sempre havará palavras arcaicas. O que não é sinónimo de 'sem valor'.

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