14 março 2019

Vai um gin do Peter’s ?

SELO DE HOJE CELEBRA ENCONTRO INSÓLITO DE HÁ 8 SÉCULOS

Os Correios italianos entraram nas comemorações oficiais de um dos seus compatriotas preferidos, nascido no último quartel do século XII. Aquela vida muito distante no tempo mantém-se incrivelmente viva na memória de todo o Ocidente e de algum Médio Oriente, que continua a espantar-se com uma existência humana extraordinária, pontuada por gestos generosos e revolucionários, a ponto de ter operado um salto qualitativo na história europeia. Inimaginável, até para o próprio. 

O novo selo comemora um dos episódios mais ousados de S.Francisco de Assis. Replica um pormenor do fresco de Giotto (1267-1337) – o pintor-arquitecto, que gravou nas paredes da basílica superior de Assis uma biografia do santo, qual repórter de imagem da era medieval.  

O selo adoptou a designação do fresco de Giotto: «A prova de fogo perante o sultão».

Trata-se do encontro pedido por Francisco ao sultão egípcio Malik-al-Kamil, para aplacar a guerra que se avizinhava entre os cruzados e as tropas muçulmanas por causa do acesso aos Lugares Santos, em Jerusalém. Reza a história que o santo viajou para a Terra Santa com a Quinta Cruzada e fez-se acompanhar por um único frade, pois tinha bem a noção do risco do martírio. Quando contou aos cavaleiros cristãos a sua intenção de se reunir com o líder do Egipto para lhe pedir a paz, rebentaram em troça e incredulidade. Consideravam-na extemporânea e passaporte garantido para uma morte violenta e humilhante. Mas não houve maneira de o demover. Aliás, somou logo uma vitória notável: al-Kamil aceitou recebê-lo e agendou o dia 24 de Junho de 1219. 

Fresco total, de que o selo reproduz parte.  

Outra perspectiva do mesmo episódio, noutro fresco de Giotto. 

O encontro correu invulgarmente bem, porque o sultão apreciou muito a coragem de Francisco e terá mesmo percebido as suas razões. Mas, tal como o lado cruzado, achou irrealista o pedido de paz, quando as duas fações só pensavam em resolver os diferendos com espadas e cimitarras. A iniciativa acabou por ter o pior desfecho para Francisco, que estava pronto a sacrificar-se pela causa da paz, mas não para que tudo ficasse na mesma. Pouco lhe importava ter saído vivo daquela aventura, pois salvar a pele era a última das suas prioridades. Desgostoso e frustrado, restou-lhe regressar a Itália. 

Na altura, não pôde antecipar que a reunião inconclusiva de 1219 iria impressionar fortemente as gerações seguintes, percorrendo oito séculos sem perder a sua força inspiradora, ainda que tamanha audácia fosse quase inimitável! Afinal, aquele resultado desengraçado lançara uma semente revolucionária, que outras personalidades visionárias iriam ajudar a fazer crescer, aos poucos. 

Neste século, multiplicaram-se os gestos de aproximação ao Islamismo, na senda do franciscano. A 6 de Maio de 2001, S.João Paulo II entrou na mesquita de Damasco, para reforçar o diálogo inter-religioso, que se iniciara em Casablanca (1985). A 30 de Novembro de 2006, foi a vez de Bento XVI entrar na Mesquita Azul de Istambul, num dia especialmente festivo para ortodoxos e católicos, dedicado a S.André, fazendo o triângulo entre dois grupos da Cristandade e o Islão. Há um mês, no Domingo 3 de Fevereiro, o Papa Francisco aterrou em Abu Dhabi para a primeira visita de um pontífice à Península Arábica, que lhe concedeu as maiores honras. Começou por ser acolhido pelo Príncipe herdeiro e acompanhado pelo Grão Imame. Ficou hospedado no palácio destinado aos hóspedes mais ilustres dos Emiratos. O programa incluiu uma reunião com o Conselho Muçulmano de Anciãos, um encontro inter-religioso e a celebração de uma Missa pública num estádio de futebol, para comportar o número exorbitante de fiéis, naquelas paragens – 135.000 participantes. 


A 1 de Março, decorreu o lançamento oficial do selo comemorativo dos oitocentos anos do encontro de Francisco com o sultão, num convite directo à nossa geração para responder aos desafios do presente. A cerimónia teve lugar em Roma, no Ministério do Desenvolvimento Económico, para incentivar o diálogo entre as civilizações da bacia mediterrânica. Num dos discursos, frisou-se: «São Francisco despojou-se de tudo e com o seu exemplo reconduz-nos à importância do amor pelo próximo, reconduz-nos à importância do encontro, do respeito recíproco e à necessidade dramaticamente atual de servir a paz entre os povos, entre as religiões. (…) [Naquele] 24 de junho de 1219, [n]os anos da quinta cruzada, (…)  o cristianismo e o islão não tinham pontos de encontro, mas só de confronto.»

Entrada exterior do Ministério e escadaria interior com o magnífico vitral. Localização: Via Molise, perto da Piazza Barberini.

Nas voltas misteriosas da História, é frequente sermos surpreendidos pela actualidade de gestos e acontecimentos de outrora, que pareciam insignificantes, falhados, tipicamente para esquecer. Em igual proporção, assistimos ao esquecimento de atitudes e de feitos vistosos e espalhafatosos na sua altura (mas irrelevantes para o futuro), de gente poderosa e influente, que se esperaria terem a posteridade garantida. Só que poucas realidades escapam tanto às regras e às expectativas humanas quanto essa brisa fugidia e indomável que é o curso do tempo, onde se guarda uma memória do passado com boa dose de imprevisibilidade. Talvez isso explique por que ‘quem faz o bem, nunca sabe [pelo menos, todo] o bem que faz’. É espantosa a triagem do tempo, que não cessa de nos intrigar e ultrapassar!  

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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