31 julho 2019

Vai um gin do Peter’s ?

FACETA E NOME DESCONHECIDOS, EM MARIA RUEFF

A actriz que trabalha há mais tempo com o Herman revelou, numa conversa(1) com a Maria João Avillez, decorrida no auditório da paróquia do Campo Grande  no final de Março de 2019, quanto Deus é marcante e presente na sua vida. 



Percebe-se o diálogo regular de Maria Rueff com Deus, o seu «amigo de almofada». Entram juntos em palco e atravessam juntos grande parte do dia-a-dia da actriz. Até o humor, que lhe corre nas veias, foi depurado pela fé, a partir de um livro esclarecedor, que intitulou de «O sorriso de Deus», apenas lembrando bem que o autor era jesuíta. Assim, é possível que o título seja antes «DEUS RI: Alegria, Humor e Riso na Vida Espiritual», de James Martin, SJ. Mas, qualquer que seja o canhenho, aprendeu naquelas páginas a esquivar-se da piada trocista, maldosa, que fere e humilha o caricaturado, para redescobrir o lado vitamínico e catártico da comédia, capaz de iluminar um pouco uma existência pejada de claros-escuros. Passou a destrinçar os dois territórios do cómico pela fronteira que as preposições demarcam: rir com, nunca rir de. E concluiu: «Sinto-me ao serviço do outro e foi assim que resolvi [a questão] no meu coração. Encaro o humor como espelho do outro e não como uma farpa». 

Como se cruzou com Deus? – perguntou-lhe a Maria João. Bebeu no berço, sobretudo com a mãe, a grande mestra em tudo, inclusive na fé. Conta que a mãe, preocupada com a saúde da filha mais nova, colocou-a sob a protecção divina, insistindo em ter um bebé que seria defeituoso. Como nasceu no Dia do Corpo de Deus, recebeu o nome de Maria de Deus Rueff!  



Lembra ainda um conselho maternal que mais ninguém da sua geração terá recebido, tal a originalidade da senhora: quando faltaram a Rueff umas décimas para entrar em medicina, disse à filha – ‘Ainda bem, porque a tua vocação é o teatro. Vai antes p’ró Conservatório’.  Identifica a marca de Deus na família pela facilidade em falarem uns com os outros: «Em casa, sempre mantivemos o hábito de conversar, que é das coisas que mais adoro na vida e nos fez ultrapassar a desgraça da descolonização. (…) Deus está muito, muito presente, é como se estivesse ao meu lado. É uma relação absolutamente íntima, próxima.» [citada por aproximação]

A conversa flui com ritmo, percebendo-se que Rueff reflecte a sério sobre a vida e a sua condição. Poucas ou nenhuma pergunta a terão apanhado desprevenida… 

Situa a origem mais profunda da comicidade no sofrimento, nas experiências trágicas, como aconteceu a Chaplin, Totó e a todos os comediantes mais filósofos. No seu caso e à parte da boa componente hereditária, associa-a ao calvário por que a família passou quando se mudou para Lisboa, fugindo à guerra no Norte de Moçambique, na mesma Beira que é hoje açoitada por tempestades calamitosas. Essa dor sublimada deu-lhe (e dá) forças para desencantar um prisma cativante e renovado da realidade, que repara no copo meio cheio. A «arte do ridículo» fê-la crescer humanamente, distanciando-a de uma dor devidamente relativizada, para transfigurar a percepção da vida através da «pirueta» saudável e discernida que o humor opera.

A sua personagem mais famosa – o Zé Manel taxista.

O pintas besuntado em brilhantina, «há 20 anos na praça» e irritantemente assertivo sobre todo e qualquer assunto

Ainda há nervos, quando entra em acção? Claro e são cada vez maiores, como aprendeu com outra referência do teatro – Eunice Munoz – porque há mais noção do que se faz e deseja-se cumprir melhor a «matemática de uma peça (…) com coragem e grande humildade. (…) Cada espectáculo é único.» 

Quando está sob os holofotes: «espero ser veículo de qualquer coisa; sei que não sou bem só eu (ali).» Empenha-se em «mostrar alma, humanidade e revelar os dois lados da vida: comédia e tragédia».

Adoptou o lema do Papa Francisco «levai a vida com humor», entendendo-o como a aceitação do outro, exactamente como ele é. Explicou-o com uma imagem tocante, ligando o Papa a um contratempo parvo com uma catequista da infância, quando veio para Lisboa, depois da família perder tudo em África. Queria excluí-la de uma procissão como figura de relevo, por não ter sapatos pretos! À data, a criatividade da mãe solucionou-lhe o problema. E hoje, Rueff vê Francisco como alguém que saberia sempre acolher aquela pequenina com os sapatos da cor que fossem. Foi a vez da experiente entrevistadora ser apanhada pela comoção, depois da ‘pirueta’ magistral feita a partir de um episódio apoucado de outrora, numa criatividade benigna.

O santo da sua devoção é, naturalmente, uma escolha pessoal, muito pensada, que lhe serve de bússola no trabalho: o pouco conhecido S.Filipe Nery (1515-1595), à parte da rua junto ao Largo do Rato – um italiano jocoso, ‘buffone’, nas suas palavras,  que não se coibiu de brincar com o Papa e Santo Inácio de Loyola. Nem acha suficiente ser conhecido por o ‘santo da alegria’ alguém que levou bem mais longe a graça. Maria chegou a ir à Igreja dedicada a Nery, em Roma, onde lhe pediu ajuda para saber ultrapassar a dor e depois manter-se nesse trilho exigente e sub-reptício da comédia bondosa. Evocou a bondade inúmeras vezes, procurando-a e convocando-a constantemente. 
  
O que Deus lhe pede? «Acho que Ele nos pede escuta. E a comédia é uma arte muito barulhenta.»

O que lhe falta fazer?  «Deus sabe! Agradeço tanto a Deus. Não fiz nada, só recebi, embora trabalhe muito. Tenho de estar atenta a tudo, tudo. Não sou ambiciosa. (…) Os meus pais acreditavam mais em mim do que eu própria. (…) As coisas vão-me acontecendo. Mas tudo o que faço é com paixão. Tenho de pôr o coração nas coisas.» 

Está preparada para um dia partir? «Faço muito o exame de consciência, dos jesuítas, e o exercício do perdão. Já pedi perdão a figuras com quem brinquei e poderei ter magoado… Também agradeci a quem devia. Estou preparada para Deus me dizer ‘vá, está na hora’.»

O que pede à vida? «Só peço para a minha filha uma estrada que possa ser tão florida como foi a minha.»

Correm em acelerado aqueles 50 minutos de flashes sobre uma vida com garra, graça e enorme atenção aos outros. O olhar lúcido e meigo dá uma imensa frescura ao seu humor, que entra naquele registo raro, imune ao cinismo que cede à piada fácil e amargo-corrosiva. Em Rueff, a vontade de viver aproxima-a de quem a rodeia, para «amar o outro como ele é. É isso que o humorista faz de alguma forma».  Afinal, parte tudo do mesmo Epicentro.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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1 comentário:

Anónimo disse...

Vá lá... MZ,

1. o vídeo não é vídeo: é áudio.
Em tempos escrevi para a RR a sugerir que fizessem como a Pastoral fez na Capela do Rato, também com MJ Avilez. Nada há como ver e ouvir. Muito sofrem cegos e surdos...

2. o Curso Universitário que a entrevistada menciona é o de Direito e não o de Medicina.

venenosamente cumprimenta,
o o

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