Vincent Lambert, inumanidade, eternidade
Estou a velar a minha mãe. São, talvez, as últimas horas da sua longa jornada. Extingue-se lentamente por causa da fome e da sede. Deixou de conseguir engolir. Ontem teve uma crise muito forte, pensei que fosse o coração; era a sede. O seu sofrimento atravessou-me a alma, e a mente lembrou-se espontaneamente de Vincent Lambert e aos muitos, como ele, deixados a sofrer tão desumanamente [depois de ter sido privado de substâncias alimentares e de líquidos necessários para a sua existência].
A minha mãe, de 84 anos, tem uma vida plena, uma grande fé. Agora o seu corpo não pode receber soro, mas não queremos levá-la para o hospital, para as mãos de outros. Morre aqui, onde a vimos trabalhar e amar, sofrer por nós. Uma dor, sim, mas também uma glória, um orgulho. Ao contrário, para os Lambert, para os Alfie de ontem e de hoje, com o seu secreto destino interrompido bruscamente, que glória, que dignidade?
Olho à volta. Nas paredes de casa, as fotografias de família trazem de volta a minha mãe como era antes, e como permanece indelével no coração. Entre as imagens está também a reprodução de uma pintura de Dalí: “Persistência da memória”. A minha mãe gostava da arte, vibrava com as coisas belas; muito lhe devo a minha sensibilidade e a minha paixão atual.
Também Dalí, naquela noite, em angustiosa espera da sua mulher Gala, tinha diante dos olhos alguma coisa já vista: a paisagem marinha e rochosa do cabo de Creus, pintado anos antes e nunca concluído. Foi então assaltado por uma dolorosa solidão, e por um instante percebeu a futilidade de todas as coisas. Pegou na tela e começou a pintar sobre as rochas relógios derretidos. Queria exprimir assim o inexorável liquefazer-se de todas as coisas.
Sobre o relógio de bolso, em primeiro plano, formigas em movimento, sinal da matéria corruptível que não resiste ao choque do tempo. Terá Dalí percecionado o drama da eternidade? O nosso corpo não é eterno, mas a exterioridade não é mais do que o invólucro das coisas, como o vidro e o aro não são mais do que o recipiente do relógio. O nosso destino só pode ser outro.
O declínio do corpo não pode ser a última palavra sobre o ser humano, de outra maneira também nós seremos um dia pasto para as formigas. Assim pensam, talvez, aqueles que desprezam o ser humano com deficiência. Mas não, não somos pasto para formigas, e precisamente aqui e agora, à cabeceira da minha mãe, olhando o seu rosto tão semelhante à figura central pintada por Dalí, compreendo o dom enorme recebido, a espessura de uma vida que agora me está a dar à luz de novo na dor, mas uma dor de outro género e de outra natureza.
São por isso para mim muito tristes aqueles que descem às praças embandeirando um progresso que mata os inermes, denegrindo o valor inestimável da família fundada sobre um homem e uma mulher, troçando de princípios não negociáveis em nome de uma civilização finalmente sem Deus.
O tempo nunca acaba quando se está à cabeceira de uma pessoa que sofre, tem-se a sensação de viver minutos eternos. No entanto, é neste tempo dilatado que se oculta a hora da verdade. A hora em que todas as hipocrisias, as teorias, as bandeiras mais ou menos vencedoras que erguemos desaparecem. As batalhas aqui na Terra não valem nada se não combatem pela eternidade, se não lutarem contra caminhos que não são nossos, mas "outros".
«Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum»: a voz do papa Bento traz-me de volta à realidade. A oração em latim acalma a minha mãe. No estado de sonolência em que se encontra, mal responde, movendo os lábios. Sim, tudo é vaidade, diz Qohélet: só restam a oração e a cruz, o verdadeiro mar que nos leva a outras praias, semelhantes à paisagem sem limites por trás dos derretidos relógios de Dalí.
Gloria Riva
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 11.07.2019
As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
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