17 junho 2020

Vai um gin do Peter’s ?

MÁSCARAS E TIQUES DE SEGURANÇA CANSATIVOS 

Penso que será consensual o desconforto de usar máscara, a atrapalhar a respiração e até a visão, a fazer calor e a esconder demasiado as feições. É como se meia burka já estivesse a fazer caminho entre nós… Isto não nega que poderá ser uma prevenção sanitária válida para o próprio e para os outros. Qualquer sistema de saúde fragiliza-se se for muito pressionado e o nosso já está frágil, pelo que agradecerá termos um cuidado simples – ainda que irritante – para se evitarem contágios escusados. Mesmo que este vírus seja de perigo questionável, esta acumulação de ordens (algumas num ziguezague confuso, já para não nos determos na multiplicação das excepções incompreensíveis) servirá de estágio para novas pandemias, para lá de uma eventual segunda vaga. Este coronavírus pode ser apenas ‘o fim do princípio’, evocando a expressão de Churchill depois de um ano de guerra.  Em Portugal, até temos a sorte de haver bastante sol, o que costuma erradicar vírus. Esperemos que este não seja uma excepção e tenha causa natural, etc. etc.

Foi a pensar neste tempo bizarro, a ficar sobrecarregado com um ritual de precauções maçador, que a recordação de um episódio com um chefe carismático da Lisnave pode ser inspiradora. Aquele líder com tacto e sentido de humor dava o maior jeito, nesta fase, mas teremos de viver com o que há, como bem sugere o autor, a quem volto a agradecer a possibilidade de postar o seu texto:     


«O capacete do Eng. Perestrello

A maior parte das histórias que conheço da vida profissional do meu Pai foram-me contadas por outros, mas ele abria excepções a esta reserva quando não era o protagonista, ou quando se via como testemunha passiva dos acontecimentos. Foi assim que conheci, através dele, a história dos capacetes.


O assunto era muito importante para o meu Pai, empenhado em promover a segurança dos operários nos estaleiros navais de Lisboa. Uma das suas iniciativas foi comprar capacetes de protecção e pedir aos Directores de cada Departamento que os distribuíssem ao pessoal. A seguir, visitou cada zona de trabalho para verificar se as instruções estavam a ser cumpridas. Infelizmente, em toda a parte estava montada uma autêntica «guerra civil». De um lado, os trabalhadores queixavam-se de que era impossível trabalhar com capacete, de que os capacetes faziam mal à saúde e até criavam situações de perigo. Do outro lado, os Directores não cediam no uso obrigatório dos capacetes ainda que, na melhor das hipóteses, só conseguissem vitórias momentâneas, que não duravam mais do que o tempo de eles virarem as costas. A guerra ainda não tinha começado no Departamento do Eng. Perestrello, porque ele, em vez de distribuir imediatamente os capacetes, seguiu outra estratégia.


Vale a pena apresentar brevemente o Eng. Perestrello. Embora eu não o tenha conhecido directamente, ouvi testemunhos. Era um homem alto, elegante. Herdara da sua família ilustre um certo toque de classe, ainda que ele fosse tão acessível e natural que o relacionamento era descontraído e agradável, sem se notarem as diferenças hierárquicas. Apreciava cada pessoa, gostava de conversar e de conviver, e toda a equipa, desde os operários aos engenheiros e aos colegas da Direcção, reconhecia a sua liderança. Chegou a ser o Administrador-Delegado do estaleiro da Lisnave.


Como disse, quando recebeu instruções para distribuir os capacetes, o Eng. Perestrello não se apressou. Começou por reunir a Direcção e os engenheiros e combinar que eles próprios passariam a usar capacete. No dia seguinte, mal desceu às oficinas, com o seu capacete, foram os operários que se dirigiram a ele e lhe pediram para também receberem capacetes: «se os Directores e os engenheiros usam capacete, muito mais se justifica essa protecção para quem trabalha nas oficinas». Não foram precisos muitos argumentos para o convencer e rapidamente se contabilizou e se distribuiu o número de capacetes necessários.


Nos outros departamentos, a tensão da «guerra dos capacetes» arrastou-se por mais tempo e a melhoria das condições de segurança no estaleiro, neste domínio e noutros, exigiu um esforço enorme e persistente. Só no departamento do Eng. Perestrello as coisas eram diferentes.  Aí – contava o meu Pai –, os operários almoçavam de capacete na cabeça.


 
A Administração e alguns Directores do estaleiro acompanham membros do Governo numa visita oficial em 1965. Não era só o Eng. Perestrello a usar capacete, mesmo nestas ocasiões


As máscaras faciais, as viseiras e todas as regras de segurança que as autoridades estabeleceram para o actual tempo de pandemia recordam-me os capacetes do estaleiro naval nos anos sessenta. Algumas pessoas sentem verdadeira repugnância em cumprir as regras e estão convencidas de que as exigências são inúteis, ou até prejudiciais. Sobretudo quando o Governo, ou até as autoridades eclesiásticas, dão directivas concretas em relação às igrejas e às cerimónias religiosas, ferve-lhes o sangue de indignação pelo desprezo das coisas de Deus e o desrespeito pela liberdade fundamental de Lhe prestar culto. Realmente, a obediência é uma virtude difícil quando choca com o nosso ponto de vista.

Talvez uns líderes tenham mais jeito que outros para facilitar a obediência. Em todo o caso, é interessante reparar como – dependendo da perspectiva com que vemos as situações – a mesma coisa nos parece intolerável ou a consideramos um direito honrosamente conquistado.


Talvez a obediência mais custosa tenha mais mérito e dê mais alegria a Deus. Ainda que talvez, com alguma distância emocional, acabemos por reconhecer que «não era caso para tanto».



José Maria C. S. André
Publicado a 14 de Junho de 2020 em blogues luso-canadianos
e em diário açoreano. 

Repescando a importância do ponto de observação para a forma de percepcionar a realidade e depois reagir, uma imagem certeira clarifica esse peso. Goethe tinha a convicção de que a maioria dos desentendimentos entre as pessoas era fruto de meros mal-entendidos, cada um a partir da sua perspectiva pessoal, com pouca capacidade, por vezes também sem especial vontade, de se colocar na posição do outro para entender as suas motivações e tentar alguma aproximação. 


Que dizer das diferenças óbvias e, por vezes, abissais entre os pontos de vista de gerações separadas por séculos de distância? Que dizer da actual vaga de pretensos julgamentos ao passado, alimentada pelo típico atrevimento dos mais ignorantes, rápidos a resvalar para as  reacções categóricas e impositivas? Que dizer do desrespeito alarve pelo património artístico dos povos, a pretexto de não passar no crivo de gente disposta a fazer tábua rasa da história? Que dizer desta intentona para reescrever a história sob a batuta de uma censura violenta e em tolerância zero? De facto, são sempre as mentalidades censórias as adeptas de apagar e reformular a memória do passado. No fundo, já estamos a presenciar actos de cariz totalitário, ainda que os desordeiros tenham pouca ou nenhuma noção disso, apenas deambulando ao sabor das multidões, especialmente vulneráveis ao descontrole e à irracionalidade. De facto, deveria fazer soar campainhas nas nações que prezam a liberdade, enquanto a onda não evolui para tsunami. Ironicamente, voltamos a constatar que este tipo de vandalismo medra melhor em ambientes democráticos, à sombra da liberdade de expressão. O menos que se lhes pode sugerir, com fleuma britânica, é:


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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