Segundo João Miguel Tavares, numa conversa do Observador sobre novos espaços de trabalho (penso que na semana passada) se a palavra mais usada nos últimos tempos é pandemia, a segunda será teletrabalho. São essas as duas que interessam para este meu devaneio.
Dois pequenos episódios:
(i) Estou na Igreja. Passa por mim uma pessoa de quem sou amigo; engraçada como é, diz-me a rir por detrás da máscara que lhe tapa uma faixa de rosto que vai do nariz até ao queixo: sou fulana...
(ii) Estou num supermercado. Passa por mim um cavalheiro que eu não me parece saber quem é; traz uma máscara que lhe tapa uma faixa de rosto que vai do nariz até ao queixo. Acena e baixa a máscara para se identificar; embora não conheça o cavalheiro (posso estar enganado, contudo) baixo também a minha máscara. De facto, não nos conhecemos, mas só percebemos isso com a cara destapada
Não tenho histórias curiosas de teletrabalho, cujo modelo sigo quase exclusivamente ha 13 anos. O que sei, o que vou ouvindo por aí, é que o futuro da vida profissional das pessoas passará desejavelmente por um sistema misto: as pessoas vão ao emprego uns dias, trabalharão em casa outros. O terrível deste sistema, agravado com uma utilização generalizada da máscara em lugares públicos ou mais confinados, é que matará uma forma de romance que era determinante para um tipo de pessoas. Em bom rigor, o meu raciocínio poderia aplicar-se ao mundo universitário, com o misto de aulas à distância e aulas presenciais com máscara.
Conheci pessoas que casaram com colegas de faculdade; conheci pessoas que casaram com colegas de emprego; conheci pessoas cuja vida social passava quase exclusivamente pelos/as colegas de faculdade ou de emprego. Esse modelo de vida está em risco, e o governo deveria olhar para estas pessoas, não como um foco de dificuldades económicas, mas como um problema de saúde mental - ou como um caso de estudo a ser publicado nas revistas da especialidade. Pode ser tudo, o que dificulta a análise e a respectiva medida correctiva.
Na verdade, com o teletrabalho as pessoas ver-se-ão menos; com a obrigatoriedade da utilização da máscara as pessoas ver-se-ão ainda menos. Ora, não se vendo, resta-lhes apaixonarem-se (ou aproximarem-se socialmente) por aquilo que intuem uma da outra, por aquilo que vão descobrindo, pela beleza interior tão desvalorizada face aos atributos físicos. As pessoas apaixonar-se-ão também pela voz - ou pelo tacto. Mas fá-lo-ão intermitentemente, em função dos dias a que o patrão as manda ir trabalhar à empresa.
O Sr. Santos contínuo e a D. Adélia da Contabilidade, ambos empregados numa metalúrgica de Fernão Ferro? O Alberto (de Fornos de Algodres) e a Sandra (de Bencatel) ambos estudantes de Antropologia? A vida ser-lhes-á mais penosa, o encanto mútuo gerado pela proximidade profissional ou universitária mais difícil. Resta-lhes o zoom e uma máscara mais criativa. O que está por trás fica remetido para o exercício da imaginação e para as 2ªs, 3ªs e 6ªs quando cruzarem os olhos e imaginarem uns dentes.
JdB
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