30 junho 2020

Da racionalidade na religião

No número de Maio - Junho de 2020 da revista Brotéria, João Carlos Paiva (da Faculdade de Ciências da UP) e o Pe. Pinto de Magalhães SJ assinam um artigo intitulado As Causas dos Santos e a Ciência, onde abordam a temática dos milagres para processos de canonização na Igreja Católica. Já aqui escrevi sobre esse assunto; discordo do processo que, seguindo regras do tempo de João Paulo II, parece ter-se mantido no séc. XVI. A santidade das pessoas cujas vidas conhecemos, porque nos são contemporâneas, não podem ser validadas por senhoras que não cegam quando lhes salta óleo quente para os olhos. As vidas dos candidatos devem ser escrutinadas, mas não podem estar dependentes deste tipo de pequeninos enigmas caseiros.

Sexta-feira passada, num almoço clubístico cuja regularidade fora interrompida pela pandemia, falou-se de religião: o que são os milagres, em que se manifesta a intervenção de Deus nos acontecimentos, o que é Fátima. Aduzi argumentos que já aqui escrevi: o milagre não é a cura milagrosa do corpo, mas a conversão (no sentido mais lato do termo) do coração. Nessa linha de pensamento, o milagre de Fátima não é a aparição de Nossa Senhora, mas o ponto de chegada ou de partida de milhares de vidas que se transformaram naquele recinto. Por outro lado, não acredito num Deus interventivo nas ocorrências terrenas: Deus não está nos terramotos, nas grandes tragédias, nas doenças individuais ou colectivas. Deus pôs o mundo em movimento e permite que as coisas aconteçam, mas o que ocorre é causado, ou pelo homem, ou pela natureza. Numa atitude que pode parecer um pouco excessiva, se assim não fosse eu teria alguma dificuldade em perceber os critérios de Deus...

Almocei um dia com um jornalista de esquerda, agnóstico, que estaria numa barricada oposta à minha nalguns combates mais fracturantes da sociedade. Achei curioso quando me perguntou, num tom não provocador, se se podia ser católico sem a necessidade da fé. Para ele o interessante era o ritual, não o transcendente; queria o espectáculo visível, não os bastidores indesvendáveis. Hoje, no meu passeio matinal junto ao mar dei por mim a pensar se não estaria a ficar (também) demasiadamente racional, descurando o lado misterioso das coisas. Afinal, segundo me contaram (e não afianço a explicação correcta ou o entendimento correcto da mesma) a obrigatoriedade dos milagres nos processos de canonização assentava na ideia de que nem tudo era explicável racionalmente. Não quero perder esta suspensão voluntária da incredulidade que está, de certa forma, por trás da fé. Mas também não quero embarcar numa prática religiosa que assenta numa fezada, em devoções a relíquias, em pés de atleta curados inexplicavelmente, em êxtases ou epifanias de trazer por casa. 

JdB        

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