A imagem do «caminho»: entre a cultura e a fé
A inspiradora imagem do caminho, também presente na Bíblia, embebeu de forma marcante a cultura e encheu as páginas das literaturas pré-clássicas e clássicas, até se tornar omnipresente na literatura ocidental. É compreensível que assim tenha acontecido: ela “diz” com eficácia o crescimento do ser humano ao longo da vida, nas limitações e nas potencialidades, na procura do bem desejado ou perdido.
Na segunda parte da epopeia de Gilgameš (versão clássica entre 1300 e 1000 a.C.), o mítico protagonista, «aquele que viu o profundo», depois de ter visto o seu amigo a morrer, empreende uma longa e dramática viagem em demanda da vida perpétua sem morte (da Tabuinha IX em diante): «qual o porquê da tua viagem?» – pergunta-lhe o homem-escorpião (IX,55-60). Para chegar ao imortal sobrevivente do dilúvio, teve de fazer uma viagem nas vísceras da terra. Chegado à ilha dos imortalizados e tendo reprovado em provas sucessivas para alcançar a imortalidade, é-lhe dada a oportunidade de comer da planta do rejuvenescimento, protegida por espinhos no fundo do mar. Consegue trazê-la para terra, mas uma serpente come-lha, deixando-o a chorar inconsolável. Ao fim, «o homem que queria vencer a morte» caminha para a sua gloriosa cidade de Uruk, convertido a uma visão nova da vida, que aceita a morte como fazendo parte dela e dando-lhe sentido. Que significa peregrinar pela vida com a permanente consciência da inevitável morte? “Só os deuses habitam para sempre com Šamaš [o deus Sol]… Os humanos têm os seus dias contados; todos os seus empreendimentos não passam de vento” (Tabuinha de Yale, 140-142). A outro nível, a ênfase passa da procura da vida para a procura em si, com as respetivas consequências: a transfiguração interior, psicológica e espiritual do ‘procurador’.
Na Odisseia de Homero (séc. VIII a.C.), viagem de Ulisses desde Troia destruída até à sua querida ilha natal de Ítaca, o leitor faz o caminho interior do ser humano à procura de si próprio. O Ulisses que, através de motivos míticos, regressa às suas origens, às suas raízes, é o ser humano a regressar à sua identidade, à consciência das suas capacidades mas também da sua fragilidade e radical finitude. A Odisseia é um poema sobre a essência da humanidade, um périplo empolgante através dos sentimentos humanos mais profundos que suscita enlevo e comoção: os perigos e sofrimentos que espreitam como “castigo” dos deuses a cada esquina da vida por terra e por mar, a fidelidade inabalável – a de Ulisses a Penélope e a de Penélope ao seu querido esposo Ulisses durante a ausência do guerreiro por vinte anos, desfazendo de noite a teia que tecia de dia, iludindo assim os muitos pretendentes da sua mão –, a refinada hospitalidade gratuita e magnânima em casa de Ulisses, a franca lisura para com os estrangeiros que Ulisses vai encontrando e que eles vão acolhendo ao longo da viagem, a saudade da mulher e do filho que atormentava o inconsolável Ulisses, esquecido dos amores de uma deusa que lhe queria oferecer a imortalidade e passando os dias banhado em lágrimas a olhar para o mar, a visão da constante presença e intervenção dos deuses na história como guias e protetores dos humanos, a inspiração do humano no divino, o frequente diálogo com o divino através da invocação dos deuses, a procura dramática da liberdade e dos valores humanos, o instinto de sobrevivência fugindo à morte nas provas mais duras e menos esperadas… Por falar tão apelativamente dos sentimentos humanos no desenrolar de uma viagem épica maravilhosamente narrada, «a Odisseia homérica é, a seguir à Bíblia, o livro que mais influência terá exercido, ao longo dos tempos, no imaginário ocidental» (F. LOURENÇO, “Introdução” a HOMERO, Odisseia, Lisboa 2003, p. 11). Tão dominante é o tema do caminho na Odisseia que, a um dado momento, à viagem de Ulisses se sobrepõe a viagem empreendida pelo filho Telémaco, entendida como prova de coragem heroica e como crescimento pessoal: sai da rica casa à procura do saudoso pai entre estrangeiros, na esperança de que esteja vivo. O pai viaja ao encontro da mulher e do filho. O filho viaja em busca do pai.
Outra viagem mítica “à procura”, descreve-a As Argonáuticas, de Apolónio de Rodes (séc. III a.C.; mas há outras versões), a única obra épica antes da Eneida que poderia comparar-se com a de Homero em extensão e conteúdos, um dos mitos gregos mais célebres, celebrando o valor, a honra, o amor, o fracasso... (a sua importância emerge também da referência que Dante lhe faz na Divina Commedia, como faz à Odisseia e à Eneida). Tendo-se tornado adulto, Jasão volta ao país natal a reclamar do tio Pélias o trono real usurpado ao pai e a que tinha direito. Pélias condicionou a cedência do trono à conquista do velo de ouro (supondo que Jasão pereceria nessa missão). Jasão, porém, acompanhado dos heróis Argonautas (entre os quais, Hércules, Teseu, Orfeu…), parte numa viagem a bordo da nave Argo em busca do velo de ouro, que tinha o poder de curar todas as feridas. Era ciosamente guardado pelo terrível rei Eetes na Cólquida. Lá chegado depois de muitas aventuras, sente o rei disposto a ceder-lho, com a condição de superar três difíceis provas. Supera-as com a ajuda de Medeia, filha do rei e perita em artes mágicas, que, atraiçoando o pai, se enamorou de Jasão por intercessão do deus do amor, Eros. A superação da terceira prova consistiu em adormecer o dragão que guardava o velo de ouro no bosque sagrado. Na posse do mítico tesouro, foge a bordo da Argo com Medeia, enfrentando os perigos do mar. Porque o rei vai no encalço deles, Medeia mata o pequeno irmão para distrair e demorar o pai. Vingando esse mau comportamento dos dois enamorados, Zeus desencadeia violentas tempestades na rota da nave, que se extravia. O resto da vida de Jasão é triste, porque, enamorando-se de outra mulher, atrai sobre si as iras de Medeia: morre tragicamente esmagado por uma trave da nave a arruinar-se.
O mito do velo de ouro pode ilustrar a procura falhada: quem procura nem sempre alcança o melhor, mas pode ser encontrado. O velo de ouro está dependurado de uma árvore sagrada, símbolo de vida, e vigiado por um dragão, símbolo de forças adversas. Nesta procura, Jasão vence-as. E, se o ouro simboliza o sublime sagrado, o objetivo simbólico da empresa seria a conquista da força de espírito e da pureza, significada pela Argo, Luzente, Veloz. Mas o risco de transformar a riqueza do tesouro numa condição para aceder ao trono põe em guarda o leitor contra intenções não genuínas. Elas aparecem sancionadas com o castigo divino, pois quebravam o equilíbrio cósmico e eram um atentado à vida humana.
Na Eneida, o caminho épico do herói Eneias – que, tendo «padecido guerra e trabalhos mil» e tendo partido de Tróia, trouxe para o Lácio os deuses ancestrais e alcançou as margens do Tibre, onde fundou a gloriosa cidade de Roma, depois de ter percorrido como estrangeiro o Campo das Lágrimas e os Campos Elísios – aparece como o fio condutor dos combates e da dor, dos encontros e desencontros, das contrariedades e da glória do ser humano na procura da realização pessoal.
Na Divina Commedia, de Dante (†1321), a história poética de uma viagem situada depois da morte, através não do espaço mas do ‘tempo sem tempo’, em que o autor se torna ator a viajar no Além – descendo ao Inferno (o seu Averno, referido na Eneida), passando pelo Purgatório e subindo até ao Paraíso, as realidades últimas, definitivas (os novíssimos) – quer ser metáfora do caminho da humanidade no Aquém do tempo histórico. Para a viagem no mais Além, deixa-se inspirar na Odisseia e na Eneida. Viagem longa, dura o tempo da procura de si próprio, na sua geografia invisível, interior, de ser humano. É um caminho de conversão, o grande caminho da descoberta do significado íntimo da existência: na mudança que suscita está o valor da viagem. É uma releitura da vida para compreender que o destino do ser humano e as suas potencialidades amadurecem na coragem de ir ao encontro daquilo em que se crê.
Também Dante, poeta da viagem, exilado como estrangeiro, encaixa na sua viagem outra viagem, a de Ulisses, desejando que a sua atualize e complete a de Ulisses. A de Dante quer ir para além dos limites postos ao ser humano oferecendo-lhe um fim feliz, com a visão – no termo do itinerário, no Paraíso – do sumo bem, a visão da imagem do homem verdadeiro, Jesus Cristo, aquele que realiza plenamente a natureza humana e desvela o ser humano a si próprio: a vida aparece como o tempo que lhe é dado para alcançar a verdadeira imagem de si. É uma visão que permite conhecer a vida ao nível mais profundo e caminhar para a plenitude que chama. A de Dante é a viagem do peregrino que se reconhece limitado para o homem que encontra a plenitude em Cristo: é a experiência do «trans-humanar», do ir para além do humano sem transgredir; é a vitória do homem sobre a sua impotência.
O contemporâneo Fernão Mendes Pinto (nascido em 1510), ao legar-nos a sua Peregrinação, o mais interessante livro de viagens do século XVI português e um dos mais interessantes da literatura mundial, sugere aquilo que o caminho supõe de busca, de provas ou provações, de aquisição e de partilha de conhecimentos com povos estrangeiros. Narrar a vida no interior de uma viagem era contemplar a vida como narrativa, era um modo de caminhar desafiando a identificação entre o «decurso» e o «discurso» da vida.
Também os clássicos místicos cristãos recorreram abundantemente à imagem do caminho para exprimir a convicção de que a vida humana faz sentido enquanto caminha para a transcendência e para a união com Deus: S. Teresa de Jesus (1515-1582) escreveu o Caminho de perfeição a ser percorrido pelas Irmãs em acolhimento mútuo no convento de Ávila; e S. Teresa do Menino Jesus falava do «caminho da infância espiritual».
Outro contemporâneo de Teresa de Ávila e de João da Cruz, Miguel de Cervantes (1547-1616), «o génio máximo da literatura universal», viveu com esses santos os fulgores da grandeza do século de ouro espanhol e plasmou os seus ideais e triunfos no âmbito de uma viagem do passado para o presente, na figura de Don Quijote, considerado um dos inseparáveis companheiros de viagem da humanidade, que faz parte do espírito humano, que vive com ele e só com ele morrerá. Também nele encontramos a busca do absoluto que está no suposto relativo e implica tanto de risco como de enriquecimento da alma.
Além destes mais conhecidos, também os célebres viajantes na Idade Média – desde Marco Pólo e seus familiares para o longínquo Oriente até aos milhões de peregrinos anónimos a Jerusalém, a Roma e a Santiago de Compostela – percorreram com fervor trilhos que cansavam o corpo mas descansavam, renovavam e purificavam a alma. Viajar ao encontro de novas pessoas, de outros povos, de outras culturas, com outros conhecimentos, costumes e ideias, é das atividades que torna a pessoa mais inclusiva, capaz de integrar, compreender, aceitar e acolher os outros na sua diversidade e diferença relativamente a nós. Quem viaja predispõe-se para o encontro, para o intercâmbio de ideias e de vida com o outro, aberto àquilo que de admirável o espera ao longo do caminho.
Armindo dos Santos Vaz
Biblista, professor catedrático emérito da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
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