17 fevereiro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

 HERÓIS QUASE ANÓNIMOS  

A partir de 1938, o Terceiro Reich assumiu uma ferocidade insaciável, conquistando a Checoslováquia, a Áustria, a Polónia, até que a França e o Reino Unido declararam-lhe guerra. Assim estalava o segundo conflito mundial. 

Logo que os tambores da guerra começaram a fazer estremecer a Europa, a maioria tentou resguardar-se, como pôde. Apenas uns poucos, especialmente conscientes do perigo que Hitler representava, dispuseram-se a proteger os alvos mais vulneráveis dos invasores nazis. Nessa minoria generosa e corajosa estiveram britânicos e canadianos, que fundaram a agremiação British Committee for Refugees from Czechoslovakia. Montaram o seu pequeno quartel-general numa mesa da sala de jantar de um hotel da Praça Venceslau, no centro de Praga, para resgatar o maior número de crianças judias. Aproveitaram a emenda passada no Parlamento inglês, logo a seguir à Noite de Cristal (Novembro de 1938), que autorizava a entrada de refugiados judeus até aos 17 anos de idade, sob condição de terem uma família de acolhimento e depositarem uma caução de 50£ por criança/adolescente, para viabilizar o seu o regresso posterior à Checoslováquia. De certo modo, este relevar-se-ia o pormenor mais romântico da lei. 

Conhece-se melhor a história de um dos membros desse comité – Nicholas Winton (1909-2015) – pelo seu papel crucial a encontrar famílias para os pequenos refugiados. Nas homenagens e condecorações que se multiplicaram, depois de a sua história vir a lume, gostava de enaltecer os que tinham arriscado mais a vida naquela operação, permanecendo em Praga, mesmo depois de ser ocupada pelos nazis. Brincava com o facto de nem sequer ter conhecido a estação de comboios do coração da antiga Boémia. E nomeava quem entendia que fizera mais: «Chadwick did the more difficult and dangerous work after the Nazis invaded (...) he deserves all praise».

Nicholas W. (NW) descendia de judeus alemães, que se tinham mudado para Londres dois anos antes de ele nascer. Para facilitar a plena integração na nova pátria, tinham-se convertido aos cristianismo, baptizado os filhos e mudado o apelido germânico (Wertheim) para Winton. 

Terminados os estudos, NW fez carreira na banca e trabalhou na Bolsa de Londres, embora integrasse a ala esquerdista do Labour, crítica do sistema capitalista. Era também dos que se opunham ao pacifismo de Chamberlain, considerando-o inadequado para conter Hitler. 

Apesar das convicções políticas fortes, levava uma vida variada, com muito desporto, começando pela esgrima, onde era exímio. Só não entrou nos J.O., porque a guerra os suspendeu. Assim, em vésperas Natal de 1938, planeava ir esquiar para a Suíça, quando recebeu o pedido de uns amigos para ajudar a salvar crianças, em Praga. Rumou logo à capital checa, onde passou um mês atarefado na organização da viagem dos mais novos para as Ilhas Britânicas. A operação veio a ficar conhecida pela designação em língua alemã «Czech Kindertransport» (Transporte das Crianças), adivinhando-se que também terá ficado na memória das hostes germânicas. Neste filme de época, intitulado «Czech Jewish children evacuated via airplane (1939).webm» e gravado a 11 de janeiro de 1939, Winton aparece no final (2:39), de óculos, com uma criança ao colo. Indizível aquele adeus derradeiro, entre pais e filhos, sobressaindo o cuidado de muitas mães em não deixar ensombrar uma hora de esperança para os seus filhos com a dor tremenda da separação. A maioria daqueles pais desapareceria em Auschwitz:

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/cb/Czech_Jewish_children_evacuated_via_airplane_%281939%29.webm

NW regressou a casa umas semanas antes de os nazis tomarem Praga. Mas continuou sempre a funcionar a partir de Londres, ajudado pela mãe, encarregando-se de arranjar famílias de acolhimento na Grã-Bretanha e por todo o Ocidente. Até a Roosevelt escreveu, implorando-lhe que os EUA também recebessem refugiados. Mas só a Suécia se juntou ao Reino Unido, naquele esforço. 

Entretanto, um núcleo de carolas do tal Comité continuou em Praga, reduzida a potência do Reich. As viagens passaram a clandestinas, mas só ficou em terra o grupo de 250 miúdos escalado para o comboio de 1 de setembro de 1939. Fora o último dia do Czech Kindertransport, pois a Grã-Bretanha passara a potência beligerante e toda a travessia até ao lado seguro do Canal da Mancha era bastante aventurosa. Um dos entraves tinha surgido nos Países Baixos, que depois da Kristallnacht passaram a impedir a circulação de refugiados judeus pelo seu território. Estranhamente, resolveram legislar no sentido inverso ao do Parlamento britânico, inclusive restituindo os fugitivos ao país de origem e esmerando-se no controle de fronteiras. Valeu a perícia da diplomacia britânica para contornar aquele escolho e permitir que os miúdos checos chegassem ao destino. 

Dos tais 250 miúdos, apeados no primeiro dia da Segunda Guerra, apenas 2 sobreviveram ao conflito, que fora especialmente mortífero em toda a Europa de Leste. A diferença é avassaladora, quando se compara com os 664 (outros contabilizam 669) miúdos, que NW ajudou a salvar. 

A sua boa acção de 1938-39 foi homenageada pela BBC, meio século depois, numa surpresa visionada nos ecrãs das Ilhas, em 1988. Começaram por o convidar para se sentar na plateia do concorrido programa «That’s Life». Mal sabia ele que o resto do auditório estava ali graças à sua generosidade dos tempos de juventude. Aquela multidão de desconhecidos – entre resgatados, filhos e netos –  dava corpo e sentido à longa lista de nomes checos registados num caderno seu, que a mulher descobrira no sótão da casa. Vários tinham-se tornado investigadores e gente prestigiada na sociedade inglesa(1). Eram, ali, um sinal vivo e gratificante do alcance concreto da sua azáfama, em contrarrelógio, antes de a Guerra eclodir: 

https://www.facebook.com/BBCArchive/videos/524868598192459



Talvez se aplique a NW a bonita expressão para quem faz um bem gratuita e abnegadamente, sem a mão direita saber o que fez a esquerda.  O mesmo se aplicará aos outros entusiastas do comité salvador, que tinham arriscado a vida numa capital onde pontificavam as temíveis SS.  Winton era o primeiro a lembrá-los, um a um: Trevor Chadwick, Doreen Warriner, Nicholas Stopford, Beatrice Wellington, Josephine Pike e Bill Barazetti. 

Toda a acção de NW e dos seus amigos, bem como a sua motivação humanitária, são um bom mote para uma Quaresma mais verdadeira: «Anything that is not actually impossible can be done, if one really sets one’s mind to do it and is determined that it shall be done».

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1)  Lista que consta nos anais britânicos: «Leslie Baruch Brent (1925–2019), immunologist who did groundbreaking work on immune tolerance; Alf Dubs, Baron Dubs (born 1932), British Labour Party politician and former Member of Parliament; Heini Halberstam (1926–2014), mathematician; Renata Laxova (1931–2020), paediatric geneticist;  Isi Metzstein (1928–2012), modernist architect; Gerda Mayer (born 1927), poet;  Karel Reisz (1926–2002), filmmaker; Joe Schlesinger (1928–2019), Canadian television journalist and author; e Yitzchok Tuvia Weiss (born 1926), Chief Rabbi of the Edah HaChareidis in Jerusalem.»


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