04 fevereiro 2021

Da poesia e do mapa mental

Num ensaio intitulado The Internalization of Quest-Romance, publicado pela primeira vez em 1969, Harold Bloom, talvez o mais famoso crítico literário do séc. XX, afirmou o seguinte (e traduzo livremente):

A maior satisfação em ler Blake or Wordsworth advém da realização de novas escalas de tensão na mente, mas, tanto Blake como Wordsworth acreditavam, ainda que de forma diferente, que os prazeres da poesia eram apenas preliminares, no sentido de que os poemas eram, em última análise, andaimes para uma visão mais imaginativa, não fins em si próprios. Penso que aquilo que Blake e Wordsworth fazem pelos seus leitores, ou podem fazer, aproxima-se do que Freud faz, ou pode fazer, pelos seus, que é prover, quer um mapa mental, quer uma profunda fé de que o mapa pode ter uma utilização salvadora.  

No seu poema Isto, Fernando Pessoa usa esta ideia de "andaime" (sublinhados meus): 

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

Não me interessa tanto a ideia do andaime, mas a ideia de mapa mental, de Freud, de utilização salvadora (também poderia traduzir-se por utilização redentora). Interessa-me a ideia de que fazer ou ler poesia é uma espécie de psicoterapia, de ferramenta com que se pacificam desordens emocionais ou se restabelecem desequilíbrios.  

John Stuart Mill nasceu em 1806. Em 1809 (não 1819), começou a aprender grego. Aos sete anos já tinha lido maior parte dos diálogos de Platão. No ano seguinte começaria com o latim, tendo, entretanto, digerido Heródoto, Xenofonte, Diógenes Laércio, e parte de Luciano. Entre os oito e os doze acabou Virgílio, Horácio, Lívio, Salústio, Ovídio, Terêncio, Lucrécio, Aristóteles, Sófocles e Aristófanes; dominava a geometria, a álgebra e o cálculo diferencial; já tinha escrito uma história romana, um resumo da História Universal Antiga, uma história da Holanda e alguns poemas. Teve uma espécie de esgotamento nervoso aos 20 anos. Diz-se que se curou lendo (também) Wordsworth, um poeta do romantismo inglês que falava do coração de uma forma séria; esse romantismo que se dizia ser uma terapia ilusória ou, segundo Freud, uma ilusão erótica. Para Mill não era: apaixonou-se por Harriet Taylor. A dor, como o amor, são sentimentos que vão enchendo o nosso eu interno. Em última análise, cita Bloom, o homem tem de começar a amar para não adoecer

Termino com Harold Bloom:

Freud pensava que mesmo o romance [leia-se poesia], com seus elementos lúdicos, terá começado provavelmente nalguma experiência real, cuja "forte impressão no escritor havia despertado a memória de uma experiência anterior, geralmente pertencente à infância, que desperta então um desejo que encontra uma realização na obra em questão, e em que elementos do acontecimento recente e da velha memória devem ser perceptíveis."

Nunca tive uma relação óbvia com a poesia; tive sempre um desejo muito grande de elaborar o meu mapa mental, de sossegar as minhas feridas internas. Tivesse eu lido Harold Bloom mais cedo e o meu "affair" com a poesia começaria mais cedo.

JdB 

2 comentários:

marialemos disse...

Estávamos então em Agosto de 2019. Um bonito fim de tarde, em companhia de Hanna e António Damásio, Clara Ferreira Alves, entre outros amigos. Difícil estar-se melhor.
Contei à Clara a enorme dificuldade que tanta gente sentia em retirar da poesia o prazer que retirava dos textos em prosa. Enorme espanto partilhado também por António. (Não podia dizer que a ‘anormalidade’ era minha...)
A partir daí decidi procurar sanar este meu defeito, pelo que percebi muito grave.
Na minha procura encontrei a poesia de W. B. Yeats.
Foi a porta de entrada para um mundo extraordinário para mim desconhecido até então.
Pouco tempo depois, ao reler um dos livros do António ele diz e cito:
“Curiosamente os sentimentos sobrepostos suportam a intelectualização dos sentimentos a que me referi antes. O manancial de objectos, acontecimentos e ideias que é evocado por tais sentimentos complexos, permite-nos dar uma enorme riqueza à descrição intelectual da situação responsável pelo início do processo.
A poesia é inconcebível sem a complexidade de sentimentos a que acabamos de aludir. A análise definitiva de tais sentimentos complexos deve-se a um romancista e filósofo cujo nome é Marcel Proust.”
O inquérito filosófico, as crenças religiosas, os sistemas morais e as artes são predominantemente humanos. Para mim a arte é indispensável.
Já agora refiro que Palais de Tokyo . criou este abaixo-assinado para pressionar Roselyne Bachelot-Narquin Ministre de la Culture para a ‘LEVEE DU CONFINEMENT DES CENTRES D’ART, FRAC ET MUSEES’
https://www.change.org/p/roselyne-bachelot-narquin-ministre-de-la-culture-levee-du-confinement-des-centres-d-art-frac-et-musees?redirect=false&use_react=false&fbclid=IwAR2flNBZwDfZ_zTGX9MAVAka5oUhBWAY9vquUE6MLUm8g1YpIip0rBv2poc
porque
“L’art, au même titre que la santé, participe à soigner l’âme humaine.”
Termino com Paul Éluard
“Au crible de la vie fais passer le ciel pur.”

JdB disse...

Maria Lemos,

Obrigado pela sua visita e pelo seu comentário. É bom saber que pessoas tão eruditas também têm (ou também percebem) as dificuldades que nos parecem tão triviais.

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