13 outubro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

NAPOLEÃO SANTO?... SÓ NA CABEÇA DO OPORTUNISTA-MOR

Por motivos que a psicologia explicará, o perfil dos oportunistas tende para o repetitivo, sem absorver as diferenças expectáveis face a conjunturas tão distintas como a época, a geografia, a raça, o temperamento e nível cultural dos protagonistas, etc. Mas não, o padrão repete-se, geração após geração, em qualquer ponto do globo. Num retrato robot, sobressai a megalomania, a astúcia, o óptimo conhecimento da psicologia humana, a capacidade de manipulação usada sem escrúpulos, um supremo descaramento (propriamente, “lata”), amoralidade num extremo desinteresse pela verdade desaguando na mitomania, boa dose de imaginação e uma versatilidade camaleónica apta a operar transfigurações de 180º C em acelerado. Obviamente desprovidos de “coluna vertebral”, são avessos à lealdade, traindo ad nauseam. Têm por horizonte o instante presente, pelo que sobrevalorizam o sucesso imediato quais campeões da sobrevivência. Serão das melhores exemplificações dos “filhos das trevas”, na acepção evangélica, focada na sua habilidade ardilosa e nas aptidões manipulativas.

A maleabilidade sem escrúpulos deste perfil psicológico desponta, com especial exuberância, nas fases conturbadas da história e nos locais (países, etc.) onde as instituições são débeis, portanto presas fáceis dos calculistas, com jeito para colocar tudo ao seu serviço, funcionando acima e à margem de qualquer autoridade (necessariamente fraca).  

Por isso, a Revolução Bolchevique foi fértil na erupção destes parasitas da sociedade, que pulularam amiúde na própria elite comunista revolucionária. O mesmo acontecera 100 anos antes, durante e por causa da Revolução Francesa. Precisamente, no coração da Cidade das Luzes, viveu e prosperou um campeão do oportunismo – Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1838). De raízes aristocratas, começou por ser clérigo mas rapidamente abandonou a fé cristã e tornou-se num eficientíssimo diplomata e ministro dos negócios estrangeiros, disposto a e capaz de todas as guinadas. Sempre se moveu bem nos meandros do poder, tendo sido agraciado com os títulos de Príncipe de Benevento e, mais tarde, de Príncipe de Talleyrand. O seu longo currículo, num contínuo de lugares de poder, ilustra o êxito alcançado em vida e imortalizado em inúmeras telas, onde a sua presença pontifica. 

As mil poses do cortesão de todas as modas e regimes.

Os mil ofícios e títulos do campeão do oportunismo, que surfou por entre os diferentes regimes em que viveu.

Por comparação, parecem poucas as caricaturas de época, que denunciam o seu óbvio oportunismo. 

«O coxo (Talleyrand) a guiar o cego» (The lame leading the blind) – caricatura de 1832,
do inglês John Doyle, a parodiar com a parceria entre Talleyrand e Lord Palmerston.

Com Bonaparte, Talleyrand levou o servilismo indispensável para se manter à tona até novos patamares, sendo incumbido da tarefa de fabricar a canonização do Imperador. A aventura rocambolesca está sintetizada neste artigo escrito em estilo cinematográfico, publicado a 8 de Agosto e gentilmente cedido pelo autor. 

«A festa de S. Napoleão

No próximo dia 15 de Agosto, como todos os anos, celebra-se a grande solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu.

Como todos os anos? Bem, houve um tempo em que o Imperador dos franceses, Napoleão Bonaparte, substituiu Nossa Senhora por S. Napoleão. Que a Igreja nunca tivesse canonizado um Napoleão não era problema, porque entre as multidões de centuriões romanos que se converteram e estão no Céu, possivelmente algum se chamava Napoleão e, mais importante que um Napoleão no Céu era o Napoleão omnipotente que governava a França e queria dominar o mundo. Parecia-lhe que quem mandava tanto neste mundo podia também mandar no outro mundo e a Igreja cabia sob a autoridade suprema do imperador.

Napoleão nomeava bispos em França, dispunha dos padres e dos conventos, substituía a seu bel-prazer as celebrações católicas por festas de S. Napoleão, mas Deus ainda não era seu súbdito e o Papa, seu representante na Terra, ainda lhe escapava. O magno desafio de subjugar a Igreja foi confiado a um profissional de invulgar habilidade, chamado Talleyrand.

A trajectória deste especialista é desconcertante. Como, apesar de ser nobre, não podia fazer carreira militar, porque tinha uma perna mais curta que a outra, decidiu em alternativa ser bispo. Naquela altura, em que os reis mandavam tanto, o plano era exequível e, de facto, o Rei nomeou-o. Pouco depois, o Rei reúne os Estados Gerais e Talleyrand entra na política ao lado do Rei. Como este estava falido, Talleyrand propõe nacionalizar os bens da Igreja. Com pouco mais de dois anos como bispo, a função deixa de lhe interessar e demite-se. Entretanto, abandona o Rei, refugia-se momentaneamente no estrangeiro durante a revolução e regressa como Ministro dos Negócios Estrangeiros do Directório. Entretanto, começa a conspirar e organiza o golpe de Estado que acaba com o Directório e prepara o consulado de Napoleão, que mantém Talleyrand como Ministro dos Negócios Estrangeiros e seu principal conselheiro. É nesta função que concebe o seu plano para subjugar a Igreja.

O primeiro passo consistia em raptar o Papa Pio VI, escondê-lo em França e anunciar que tinha morrido. O segundo passo seria dar tempo para que um novo Papa fosse eleito e, depois, apresentar Pio VI afinal vivo. Confrontada com dois Papas em exercício, a Igreja dissolver-se-ia em lutas internas, Paris substituía o Vaticano e o Imperador substituía o Papa.

A primeira parte da operação, invadir Roma e raptar o Papa, foi fácil. Levá-lo para França correu menos bem porque as multidões desobedeciam ao Imperador e ajoelhavam-se à passagem do prisioneiro. Mas a parte do plano que correu pior foi que Pio VI não sobreviveu aos maus tratos e morreu antes de a Igreja ter escolhido o sucessor. Pior ainda, para marcar a continuidade, o Pontífice seguinte escolheu o nome de Pio VII.

Preocupado com a situação da igreja em França, Pio VII cedeu em tudo o que não era essencial. Aceitou o confisco dos bens da Igreja e reconheceu o Governo francês em troca de alguma liberdade para a Igreja. Só não pôde aceitar o divórcio de Napoleão, nem o bloqueio económico ao Reino Unido. Como as cedências não bastavam, o exército francês volta a invadir Roma e Pio VII é levado prisioneiro para França. Sujeitam-no a enormes pressões mas resiste e, quando a estrela de Napoleão começa a apagar-se, o Imperador desiste do plano e consente que o Papa regresse a Roma.

Talleyrand —que mudava de amantes a um ritmo que escandalizava o próprio Napoleão, que também não era fiel à sua mulher— depois de ter apoiado o Imperador, começa a conspirar contra ele. Cai Napoleão e Talleyrand é eleito para chefiar o Governo provisório e junta-se ao novo Rei Luís XVIII, de quem depois se afastou. Continuou assim a manter o poder e a trair, um a um, os seguintes que o nomearam.

No dia da morte, Talleyrand assina uma retractação por tudo o que tinha feito contra a Igreja e recebe a Unção dos Enfermos. E S. Napoleão? A Igreja ainda não canonizou nenhum Napoleão, mas o ex-Imperador Napoleão Bonaparte quis morrer «no seio da Igreja Apostólica e Romana». Pouco antes de morrer confessou-se ao Pe. Vignali, enviado do Papa; fez há poucos dias 200 anos.

E no próximo dia 15 de Agosto, em todo o mundo, também em França, celebra-se a Assunção de Nossa Senhora ao Céu.

Talleyrand numa caricatura de 1815 como o homem das seis faces:
«Viva o Rei!», «Viva o Imperador!», «Viva o 1º Cônsul!», «Viva a Liberdade!»,
«Viva os notáveis!», «Viva!...».
Numa mão, o báculo de bispo, na outra os símbolos da revolução;
a perna esquerda mais curta que a direita

José Maria C.S. André

Publicado em media anglo-portugueses, a 8 deAgosto de 2021

É curioso que o sucesso destas figuras esteja marcado pelo paradoxo, o que lhe encurta a longevidade, tal o grau de desfasamento da realidade. É estranho que gente tão talentosa comece logo por desbaratar e desvalorizar os teimosos factos, que tarde ou cedo irrompem como vulcões indomáveis. É irónico que pessoas tão vaidosas aceitem passar por lacaios de líderes, frequentemente, bem menos talentosos, mas apenas com mais força bruta para ascender aos pináculos do poder. Eça, Shakespeare e tantos outros reservaram-lhes inúmeras páginas na sua produção literária, sobretudo nas comédias, aproveitando o toque burlesco que invade as existências ziguezagueantes destes oportunistas com nome nos canhenhos de história. Mas felizmente que a realidade, a seu tempo, supera todas as artimanhas e recoloca tudo num lugar sábio, onde cada um encontra o lugar que é ‘seu’.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

1 comentário:

Anónimo disse...

Maria Zarco,
Começa muito bem logo no seu 1o parágrafo.
E no meu sentir, um oportunista só medra enquanto os outros o deixarem medrar.
A caricatura de 1832, do inglês John Doyle é didáctica.

>>> Fernando Pessoa: Um período revolucionário é sempre uma ditadura de inferiores.

>>> Honoré Gabriel Riqueti, Conte de Mirabeau: Quando nos empenhamos em dirigir uma revolução, a dificuldade não é fazê-la marchar, mas contê-la.

Cumprimenta, felicitando
ao

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