28 abril 2023

Poemas dos dias que correm

Pavana para uma burguesa defunta

A cabeça de vaca da minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha.
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor. 

Repousa em paz Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi  ser o estrume que é. 

A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustrada. 

A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim i não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exalação dos suspiros cativos.

Se não fosse o desgosto  se não fosse a gordura
o retrato na sala  o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.

Minha tia mastiga  minha tia castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
– não me limpaste o pó  a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.

A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca  resolve-se na fome
Do senhor que a devora em sua santa glória. 

ary dos santos
vinte anos de poesia
insofrimento in sofrimento, 1969
círculo de leitores
1983

1 comentário:

Anónimo disse...

Graças a Deus que há gente que pensa que fazer poesia se nivela com o fazer bosta. Longa vida ao mamadou baila ba que veio do senegal para nos ensinar.

Abraço

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