Malacca, Maio de 2023 |
A minha tese de doutoramento entrou em fase de hibernação quando assumi funções voluntárias internacionais - em Outubro de 2020. A partir desse momento o voluntariado não me deu tréguas: chegaram a ser dezenas de mails por dia para ler, responder, redigir, decidir, encaminhar; eram reuniões constantes e virtuais em inglês; eram projectos que requeriam liderança, acompanhamento ou apenas presença. Era muita coisa - frequentemente demasiada para um cérebro que encolhe sem retorno. Para uma tese que tinha livros lidos, ideias construídas, supervisão segura, eu tinha escrito, em três anos, 30 páginas sofríveis. Olhava em frente e, nos meus sonhos mais selvagens, antevia pouco. Talvez em Outubro, quando acabasse uma parte mais exigente do meu doutoramento, eu pudesse retomar a tese e o gosto - que o tenho, ainda - de escrevê-la.
Há algumas semanas foi-me dito que eu não devia continuar a tese a que me tinha proposto (e o tema continua a interessar-me) mas que devia mudar completamente de rumo, para abarcar a minha vida de 20 anos na comunidade da oncologia pediátrica - uma comunidade composta por pais, doentes, sobreviventes, voluntários, profissionais de saúde.
Perguntaram-me ainda o que retenho destes últimos 7 anos de vida mais internacional. A resposta não foi difícil. O que retenho? Ocorre-me imediatamente:
- metaforicamente (embora o episódio seja real), um israelita a dançar com uma egípcia, como se fosse uma espécie de “esperanto” do sentimento; há um “lugar” onde esta comunidade se encontra, onde todos somos iguais, onde todos falamos a mesma língua. Talvez seja o que alguém me referiu – a vulnerabilidade.
- A ideia de que os Pais querem contar uma história para a qual não têm um ouvinte tendo de recorrer a um cavalo (referência a um conto de Tchekhov, chamado Tristeza, no qual um cocheiro que quer contar o drama da sua filha que morreu recorre ao cavalo, porque não há ninguém que queira ouvi-lo).
- A ideia de força, de organização, de solidariedade desta comunidade da oncologia pediátrica.
É então que me cruzo com uma pista - o conceito de Medicina Narrativa (Narrative Medicine em inglês) um conceito que se prende com a conjugação da evidência clínica, testada e comprovada, à interpretação dos sentimentos e emoções do doente por intermédio do seu discurso, oral ou escrito, como meio de fomento da atenção, respeito, afiliação, confiança e empatia (Charon, 2001, 2012). Num instante me interesso pelo tema sobretudo porque dá importância à história que ninguém quer ouvir, mas também porque há muito pouca coisa feita na área da Pediatria e menos ainda, por maioria de razão, na oncologia pediátrica.
O desafio está(-me) lançado. Fruto de alguém que conhece alguém já falei com gente que sabe muito disto, que escreveu livros e tem doutoramentos na área, que num repente se entusiasma por ver o potencial de se falar sobre isto na pediatria (em Portugal). Eu, num certo sentido, fecho um ciclo. Afinal, tudo o que rodeia as crianças com cancro me tem dado sentido à vida desde há 21 anos. Escrever a tese sobre este tema é um pequeno tributo que presto a uma comunidade que me deu tanto.
JdB
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