Imaginemos uma ajudante de cozinheira da nobreza inglesa do início do séc. XX. Imaginemo-la no seu labor diário pesado e ignorado; imaginemo-la por fim no seu sonho, traduzido num modesto anúncio de jornal de província, de ser cozinheira num hotel. Ela verbaliza o sonho, di-lo alto para testar a sua própria existência, para se fazer ouvir fora do ruído das panelas, do calor das gorduras ou do cheiro dos faisões que apodrecem pendurados num trave de madeira. À sua volta ela não vê só vitualhas e horários a cumprir - ela vê o mundo que deixou de estar confinado às quatro paredes do andar de baixo de uma casa senhorial. Mais do que ver outro mundo, ela vê-se noutro mundo. Quem convive com ela na sua condição de ajudante de cozinheira abre a boca de espanto - não só pela ousadia do sonho, mas pela estupefacção de imaginar que há outro mundo para além daquele mundo.
Imaginemos agora um casal que passeia à beira mar ao fim de uma tarde de Outono. Ele põe um chapéu que é mais adorno do que protecção, ela vai de sapatos confortáveis, agasalho ligeiro, olhos confiantes na rotina das marés. Ele vai de mãos nos bolsos, sorriso seguro, passada firme. Ela dá-lhe o braço que ele oferece - ou talvez seja ela a pedir que ele abra o braço para ela entrelaçar o seu próprio no dele. Seguem em direcção ao futuro, confiantes num certo mundo que se resume às quatro paredes metafóricas onde vivem, por onde circulam, onde estão as pessoas familiares, as casas familiares, as coisas habituais. Seguem de braço dado falando de petits riens, da vida que foi e há-de vir, dos projectos ou dos outros, das vicissitudes da existência. Sorriem - e nesse sorriso não há ausência de dor, mas segurança num modelo. Num repente, vindos em sentido contrário, um casal - ele de chapéu, ela de sapatos confortáveis - passeiam à beira mar. O que os diferencia? Este segunda casal vai de mãos dadas.
Entre o casal que circula de mãos dadas e a ajudante de cozinheira que ambiciona ser cozinheira não há diferença, assim como não há entre o casal que passeia de braço dado e a casa senhorial da nobreza inglesa do início do séc. XX.
O espanto de ver uma ajudante de cozinheira a querer ser cozinheira em 1920 não é o horror ao sonho, mas é a incapacidade de se imaginar um mundo para além daquelas paredes e daquelas rotinas. E não só imaginar um mundo, como imaginar-se num mundo. O espanto de ver um casal de mão dada não é um horror ao exibicionismo ou uma rejeição daquela estética moderna. O horror advém da constatação de um facto: o braço dado é uma rotina e uma parede que conferem segurança; há alguém que se apoia em alguém. Ora, a mão dada é a igualdade total. Ambos dão as mãos, não há ninguém a dar um braço ao braço que alguém oferece. As mãos dadas representam o fim da luta de géneros, mesmo que não haja luta de géneros. As mãos dadas representam a igualdade de géneros, mesmo que não haja igualdade de géneros.
A ajudante de cozinheira sai e encontra o casal que segue de mãos dadas. Olha para trás, não com saudade, mas com ternura, e despede-se da casa, como o casal que dá as mãos se despede do casal que, de braço dado, vê um certo futuro a chegar. Quem parte ganha uma consciência da sua individualidade, da possibilidade de um outro mundo onde se vê de corpo inteiro. A contabilidade do que se ganha e do que se perde fica com cada um. Continuará a haver ajudantes de cozinha felizes, continuará a haver casais que, de braço dado e ao som das marés, nisso encontram conforto. E haverá felicidade em quem parte e se atira para longe. O importante é não deixar destroços, ou não se constituir destroços.
JdB
* publicado originalmente a 13 de Dezembro de 2018
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