O quadro acima está exposto no Palácio Nacional de Queluz. Da autoria de Vieira Portuense (1765 - 1805) representa Angelika Kauffman a pintar o retrato de Vieira Portuense. É, portanto, uma espécie de auto-retrato por interposta pessoa - o pintor que pinta alguém que pinta o pintor.
Em boa verdade há, neste quadro, mais do que parece. Num auto-retrato, a menos que seja fruto de uma encomenda cujo alcance não discerniremos, há uma dose de vanglória. Numa época em que memória futura era uma expressão por inventar, o pintarmo-nos para a posteridade é uma manifestação de quê, se não de fatuidade? Ora, neste quadro a pessoa dominante é Angelika Kauffman e não o próprio Vieira Portuense, que vemos quase como se fosse uma marca de água numa folha de papel. Podemos então encontrar uma espécie de modéstia incompatível com o paradigma do auto-retrato? Se assim for, talvez não haja, então, auto-retrato. Poderemos imaginar o pintor a dar instruções a Angelica Kauffman quanto à forma como deve ser auto-retratado; ou ainda imaginar que o pintor reproduziu uma cena real, pelo que só percebeu como era depois de Angelika o ter pintado. E é esta teoria que me agrada mais.
Quando dizemos o que somos, não dizemos, na verdade, o que somos, mas limitamo-nos a repetir aquilo que os outros dizem que somos. Não somos nada até que os outros nos identifiquem no seu horizonte visual e sobre nós tenham ideias. Fruto da genética poderemos ter uma determinada característica, mas ninguém é sovina ou egoísta ou colérico ou generoso ou altruísta numa ilha deserta, ou numa vida absolutamente desprovida de audição. Quando me perguntam que características tenho não as sei dizer, apenas papaguear. Repito o que todos os outros disseram sobre mim - fosse no remanso elogioso de uma esplanada, fosse no calor auditivo de uma discussão. Esta inevitabilidade transforma a auto-análise, senão numa mentira, pelo menos na possibilidade de. Nada me impedirá de modelar a percepção de alguém sobre si próprio dizendo-lhe permanentemente que é vaidoso ou rancoroso quando essa pessoa não é nada disso.
Não somos o que somos, mas o que os outros dizem que somos, porque nos é impossível ver para dentro de nós próprios a não ser através do olhar dos que connosco interagem. Nesse sentido, a auto-análise é um exercício de escuta e de discernimento e, acima de tudo, de confiança. Fazer auto-análise assenta em duas afirmações fundamentais, sem as quais tudo soçobra: eu oiço o que tens a dizer sobre mim, e eu acredito no que dizes sobre mim. Por outro lado, a auto-análise só pode consistir, no verdadeiro sentido do exercício, em falar de sentimentos ou de sensações (eu sinto...), não de características (eu sou...). As características ouvem-se. Se se dizem, ou são sensações, ou não são mais do que repetições - um ser humano pensante numa actividade de papagaio. Não há diferença entre estarmos no divã do psiquiatra ou mandarmos um quarteto de grandes amigos.
No quadro - e só no quadro - do Palácio de Queluz, Vieira Portuense, o homem que na realidade se chamava Francisco Vieira, deixou que Angelika Kauffman o retratasse. Só quando ela terminou o trabalho é que pintor percebeu quem ele próprio era, ou como era: o equilíbrio simétrico da boca, a dimensão do nariz, um olhar que perscruta. Melhor, só quando Angelika terminou o trabalho é que ele percebeu como ela, a mulher que ele pinta a pintá-lo, o vê. E há nisso uma grande diferença. Mais importante do que ver o pintor é ver quem ele pinta a pintá-lo a si próprio.
JdB
Quando dizemos o que somos, não dizemos, na verdade, o que somos, mas limitamo-nos a repetir aquilo que os outros dizem que somos. Não somos nada até que os outros nos identifiquem no seu horizonte visual e sobre nós tenham ideias. Fruto da genética poderemos ter uma determinada característica, mas ninguém é sovina ou egoísta ou colérico ou generoso ou altruísta numa ilha deserta, ou numa vida absolutamente desprovida de audição. Quando me perguntam que características tenho não as sei dizer, apenas papaguear. Repito o que todos os outros disseram sobre mim - fosse no remanso elogioso de uma esplanada, fosse no calor auditivo de uma discussão. Esta inevitabilidade transforma a auto-análise, senão numa mentira, pelo menos na possibilidade de. Nada me impedirá de modelar a percepção de alguém sobre si próprio dizendo-lhe permanentemente que é vaidoso ou rancoroso quando essa pessoa não é nada disso.
Não somos o que somos, mas o que os outros dizem que somos, porque nos é impossível ver para dentro de nós próprios a não ser através do olhar dos que connosco interagem. Nesse sentido, a auto-análise é um exercício de escuta e de discernimento e, acima de tudo, de confiança. Fazer auto-análise assenta em duas afirmações fundamentais, sem as quais tudo soçobra: eu oiço o que tens a dizer sobre mim, e eu acredito no que dizes sobre mim. Por outro lado, a auto-análise só pode consistir, no verdadeiro sentido do exercício, em falar de sentimentos ou de sensações (eu sinto...), não de características (eu sou...). As características ouvem-se. Se se dizem, ou são sensações, ou não são mais do que repetições - um ser humano pensante numa actividade de papagaio. Não há diferença entre estarmos no divã do psiquiatra ou mandarmos um quarteto de grandes amigos.
No quadro - e só no quadro - do Palácio de Queluz, Vieira Portuense, o homem que na realidade se chamava Francisco Vieira, deixou que Angelika Kauffman o retratasse. Só quando ela terminou o trabalho é que pintor percebeu quem ele próprio era, ou como era: o equilíbrio simétrico da boca, a dimensão do nariz, um olhar que perscruta. Melhor, só quando Angelika terminou o trabalho é que ele percebeu como ela, a mulher que ele pinta a pintá-lo, o vê. E há nisso uma grande diferença. Mais importante do que ver o pintor é ver quem ele pinta a pintá-lo a si próprio.
JdB
* publicado originalmente a 12 de Outubro de 2015
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