26 novembro 2024

Da redenção *

Abílio entrou na Fábrica A Ilusão das Beiras pelo início da manhã de uma segunda-feira chuvosa, fria e escura. É um homem magro, alto, que mais parece um ramo de salgueiro que se partirá à menor ventania. Tem umas olheiras fundas e um cabelo grisalho muito ralo, penteado para o lado. Aparenta ter 60 anos, mas talvez ande no meio dos 40, embora gastos. 

Passados um ano a trabalhar como mecânico, estabeleceu um primeiro contacto social com a Deolinda, uma rapariga de 32 anos, morena, com uma beleza pouco óbvia, uns olhos ligeiramente assimétricos e uma cicatriz grande num braço. Deolinda sentiu-lhe a perturbação no olhar, quase como se a realidade lhe fosse algo difícil de suportar – uma luz demasiado intensa, um frio desagradável, um calor de derreter. Ou talvez, e apenas, um desajuste imperceptível com o mundo em seu redor.

Deolinda é uma minhota que, aos 22 anos, vai a meio de um curso de enfermagem em regime pós-laboral, ao qual se entrega como quem presta um serviço humanitário por vocação. É uma rapariga dócil, simpática, atenciosa. Abílio convidou-a para jantar e dançar, e baixou os olhos antes de ela lhe dizer sim, com muito gosto, com se tivesse medo de enfrentar algumas pessoas, ou como se tivesse medo de ver a vida de frente. No fim de uma noite agradável e calorosa, promissora de mais qualquer coisa, o par seguiu para o apartamento de Deolinda, onde, durante a hora seguinte, se entregariam ao prazer, à sensualidade, à exploração dos corpos. Talvez mesmo ao carinho, à atenção e à companhia, afectos cuja raridade prejudica tanta gente.

Abílio despiu-se revelando algum pudor e, estranhamente, algum incómodo pela nudez simples, descomplexada e levemente clara da Laura, fixando os seus olhos com mais intensidade numa borboleta tatuada onde ele suporia a marca de uma qualquer apendicite.

Foi sempre com algum embaraço que, deitado na cama e com um lençol por cima, se foi confrontando com o corpo da rapariga - uns seios pequenos e levemente levantados, umas nádegas bem feitas e descaídas ao limite da estética, umas pernas magras mas elegantes, um ventre liso e sem vestígios de gorduras. Deolinda foi carinhosa, disponível, amável, atenciosa.

- O que te apetece, Abílio? Ainda estás em boa forma física! Gosto muito que me acaricies. Preferes a luz acesa?

Abílio, um homem que estará na recta final dos 40, com olheiras fundas e cabelo grisalho ralo, fez amor com ela usando o cuidado de quem toca um cristal finíssimo, evidenciando a suavidade com que um alfaiate profissional e competente ajeita uma peca de tecido que cortará ao gosto do cliente, revelando a prudência de um explorador que se aventura, cauteloso, por terras que lhe são estranhas.

No fim murmurou-lhe um pedido

- abraça-me...

naquele tom de voz que revela desejo, mas pouco à-vontade devido a desabituação, e chorou como uma criança, ou talvez como uma barragem que rebenta por não aguentar mais a pressão a montante.

Levantou-se e vestiu-se, enquanto Deolinda, na cama, fumava um cigarro, surpreendida com o choro súbito, vagamente apreensiva com um exame na semana seguinte. Afastou os lençóis para que Abílio a mirasse de novo, sem que naquele olhar houvesse uma luxúria para além do saudável, mas apenas um motivo para ouvir a frase:

- És linda, Deolinda! Linda.

Depois, em pé, pronto para sair, virou-se para trás e disse:

- Saí o ano passada da cadeia onde cumpri uma pena de quase 25 anos pela morte de duas raparigas, morenas, altas e com 22 anos. Foi um impulso, uma raiva, sei lá o quê. Consideraram que já não seria um perigo para a sociedade, mas tinha que ser eu, acima de tudo, a perceber a minha cura, a estar certo de que sou inofensivo. Tu foste a prova, e sei que nunca mais quererás ver-me. Obrigado por tudo.

O ex-presidiário não teve tempo – ou talvez não tenha querido ter a oportunidade - de perceber o olhar angustiado de Deolinda, a estudante que terá de saber perfurar uma veia com uma agulha, ou estender com mestria os instrumentos a um cirurgião.

Abílio revelou um olhar diferente para a cicatriz de Deolinda, como se a realidade fosse algo a que se começasse a habituar. É possível que ela lhe tenha vislumbrado um sorriso envergonhado, não sei. Se calhar apenas o esboço, um ensaio, uma preparação. Na rádio, uma artista da moda cantava o seu último êxito, no qual o refrão mencionava diversas vezes a palavra redenção. Talvez Deolinda tenha também sorrido...

JdB

* baseado numa história já antiga

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