Explicar o caminho de Harare para o nosso destino, neste caso a 450km, não é, em termos de orientação, como informar as estadas a seguir quando se vai de Lisboa para Santarém. A nossa capital tem duas saídas principais – para Norte e para o Sul -, mas não passaria pela cabeça de ninguém instruir o viajante da seguinte forma:
- sobes a Fontes Pereira de Melo, continuas pela Avenida da República, apanhas a Estados Unidos da América e, chegando ao fim, viras à esquerda para subir a Gago Coutinho.
Fruto, seguramente, da organização da cidade em termos de saídas, o facto é que abandonar Harare passa por uma explicação semelhante. Posso afirmar a tendência, porque é a segunda vez que comprovo.
Ir da capital do Zimbabué até a Chiredzi, a terra mais próxima do Nduna Safari Lodge, é conhecer várias Áfricas:
- a África de que nos apercebemos em Harare, e que já descrevi por duas ou três vezes;
- a África dos subúrbios: Chitungwiza, por exemplo, uma espécie de margem sul semi-industrializada, com dezenas e dezenas de pessoas nas ruas, nas estradas, pedindo boleias, apanhando camionetas, migrando para aqui e para ali naquilo que me parece, ignorantemente, uma diáspora desorganizada, caótica, sem destino definido.
- a África das pequenas cidades rurais, construídas em cima de duas ou três ruas, se tanto, um ou dois pequenos estabelecimentos comerciais com ar decadente e, na generalidade, fechados; nalgumas terras maiores, um posto de polícia pode conferir ao lugarejo uma maior importância.
- por último, mas não menos relevante (com maior intensidade à medida que caminhamos para sul), a maior predominância da África profunda e tribal, onde as casas, tal como nós as concebemos, mesmo que pobres, são substituídas por aglomerados de cubatas, e as regras de convivência e de organização se modernizam à velocidade das coisas quase imóveis.
São cerca de 4,5 horas de um caminho que se faz num instante, no entretenimento de uma paisagem que é sempre fascinante, sempre diversa, nunca monótona: o capim, mais alto aqui e ali, bordejando uma estrada que serpenteia muito suavemente; os tons de verde e castanho, que predominam nos nossos olhos, salpicados por manchas de um acobreado escuro; um ar que cheira permanentemente a seco, porque a época das chuvas é de Novembro a Março ou Abril; numa determinada zona da jornada, macacos aos bandos, saltando, vendo os carros que passam, subindo às árvores, comendo mansamente no meio do capim. Por último, mas não menos importante, o espaço – essa coisa imensa, infinda, inalcançável.
Sempre tive algumas dúvidas – que se baseiam na estética do olhar, mais no que na evidência da certeza - que a terra fosse verdadeiramente redonda, ainda que achatada nos pólos. Aqui, como no Alentejo (numa ínfima parte quando comparado com a realidade que vivo), o que deixa de se ver não pode estar relacionado com a esfericidade do globo terrestre, mas com a limitação da visão humana. Com efeito, que bom seria vermos a África toda de uma vez só, do Atlântico ao Índico, apercebendo-nos da savana, do mato, da organização das populações, da proximidade do animal selvagem.
Não há palavras, seguramente as minhas, para descrever o que é a beleza sufocante e exaltante de um espaço sem limites, nalguns casos de uma planura que parece tirada a regra e esquadro, noutros com uma elevação suave e pouca; árvores surpreendentes que se erguem do meio do nada, como se tudo não fosse mais do que a natureza a proteger-nos do hipnotismo do lugar.
Sou um turista essencialmente urbano, atraído pelas casas, igrejas, palácios, ruas movimentadas, praças povoadas de gente que se senta e levanta, conversa, ri, cumprimenta quem está ao lado e sobre as quais posso inventar histórias. Encontro facilmente beleza no equilíbrio arquitectónico de Praga, na estética organizada de Paris, na esquadria do arranha-céus em Nova Iorque. Aqui tudo parece ser desorganizado, espontâneo e isento, quase sempre, da mão artificial do homem. E, no entanto, há um extraordinário equilíbrio do todo face ao possível desarranjo das partes.
Talvez aqui, como noutras partes do mundo, o encanto não esteja no detalhe. Nesta África rural e profunda, parece-me, a maravilha está naquilo que os nossos olhos abarcam globalmente, e que tem de ser visto dessa forma. O campo nem sempre está arranjado, ordenado, emparcelado, fruto da desordem política ou da cultura local. Mas, o que se vislumbra aos nossos olhos, é a imensidão – e essa nem sempre carece de uma grandeza organizada.
O relógio rondava a uma da tarde quando chegámos ao Nduna Safari Lodge. O resto da descrição fica para amanhã, para que o repouso dos sentidos e a contemplação do espaço infinito não sejam perturbados. Nada me daria maior satisfação do que provocar saudades nos que por cá passaram, e curiosidade nos que olham África com desconfiança.Adeus, até ao meu regresso...
4 comentários:
É deslumbrante. Que saudades...
Beijinhos
A curiosidade está garantida, no meu caso. E a inveja (uma pontinha, enfim) também. As saudades não, infelizmente, porque é sinal de que nunca vi ao vivo essas maravilhas. Só conheço a África do Magreb, que não tem nada que ver com essa descrição.
Hummm... tenho que começar a pensar a sério numa viagem aí...
Aproveite bem!
É, realmente, uma terra abençoada... Dizem as pessoas que por aí viveram que, para além da imensidão e das cores, o cheiro da terra é algo que também nunca se esquece. É uma pena que os "sonhos" de África tenham acabado da forma que maioritariamente acabaram! Vamos ver o futuro...
Caramba JB!
Excedeu as minhas expectativas com tamanha crónica.
O real e o imaginário convivem cheios de equilíbrio. Parabéns.
Inspiro África!
Aguardo, já com saudades, a prometida continuação.
Entretanto, os nossos filhos lá estão em paragens alentejanas - uma imensidão à nossa medida.
Beijinhos.
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