23 janeiro 2009

na islândia

a vidraça é por vezes um recurso inestimável
espécie de filtro translúcido entre nós e o universo,
como essa porta de restaurante moderno
que hoje te separa da pequena multidão lá fora.

a mistura de negro e vermelho é perigosa,
como todos sabemos bem dos livros de história
e de outras coisas que rimam com a memória
do que já fomos, do que somos e sempre seremos.

mais uma manifestação burocrática, parece-te,
'já nem dá para um entusiamo à antiga sequer,
este sindicalismo on demand', diz a teu lado a mulher
e tudo revela a essência burocrática deste tempo.

dizem-te: desempregados de espadas desembainhadas?
é coisa muito pouco vista, mesmo nada habitual,
pois o país que sobrevive já não passa no telejornal
e estes desempregados são, já se vê, gente de bem.

engoles a sopa de grão, que não te cai como devia,
e perguntas-te se será desse moderno cozinhado,
embora sabendo que a razão não está no refogado,
antes na secreta arte de manipular a algibeira alheia.

tudo se compra, tudo se vende, tudo se corrompe,
verso bem a calhar, já que te acusam de nihilista-mor.
encolhes os ombros, bebericas o café sem sabor,
serei nihilista-mor ou só lúcido? (dandy era melhor).

dormes, na rotina dos justos que navegam à vista,
marinheiros de água doce e mares sem chama,
que isto de viver enquanto se refila e se reclama,
é como reconstruir um avião em pleno vôo sónico.

a rádio fala da crise, esse animal de desestimação.
de súbito, entra-te no carro esse país (existe?) branco
a que muitos chamam islândia - ilha de fogo, portanto -
onde o impensável afinal também parece acontecer.

as pessoas revoltam-se, há pedras a voar pelos ares,
e não, não é nenhum secreto ritual, nenhuma celebração
bizarra e ancestral, é mesmo, como dizer, a manifestação
pura e dura de um mal geral: como viver sem se poder?

direitos adquiridos, o welfare state, o milagre económico,
expressões de um presente garantido, de conforto, etc. e tal,
transformam-se em palavras bolorentas, mera poeira astral.
não pagam contas de anteontem, nem são passaporte feliz.

"então isto é assim".., deve pensar aquela gente por lá,
as regras mudam em pleno jogo, "passar bem e viver mal"..
"não esperam pela demora, estes fregueses em especial",
que "a impunidade não passará!", "abaixo o governo! "..(é cá?)

retomas o teu pensamento, são exactamente 9h05,
numa cidade conhecida e tua, bem longe da islândia.
abençoado és, rapaz, por essa geográfica circunstância.
aceleras o carro, outra mudança - que bom é viver em paz.

lá longe.. mas que te interessa esse lugar abstracto?
no futuro.. mas que te interessa esse tempo por acontecer?
mas e "se lá longe e no futuro" for "o aqui e agora"? - queres tu ver..
aceleras mais, mudança engrenada, pedal a fundo.


uma lágrima contida, quase ensimesmada,
contra um muro concreto, ali logo à frente,
procuras o travão ontologicamente ausente,
enquanto te despistas - tu e a branda islândia.

nuvens de chumbo, prédios a arder,
um travo amargo, uma visão alucinada.
depois uma dor insana, vertical, funda,
depois o muro

e depois nada.

gi

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