O Fábio, o meu namorado actual, tinha um colega de cartas – chamavam-lhe o Fêquê – que, nos serões inglórios e intermináveis de azarina, como eles diziam, mantinha a sua atitude de perdedor educado rematando a noite com uma frase intemporal: quando a sorte é maniversa, nada vale ao desinfeliz. Pagava o que era devido e saía cabisbaixo, abafado por um fatalismo de noite negra que nenhuma mestria conseguia vencer.
O futebolista que estacionou o carro potente e mediu a Solange com uma precisão de microscópio vinha, acabei por saber, de uma série de jogos aziagos, entre lesões sem gravidade e desinspirações no relvado. Tinha sido assobiado algumas vezes pela massa associativa, essa imensidão de gente que tem a solução para os males de qualquer clube: da gestão das finanças ao espírito do balneário, da sagacidade na aquisição de jogadores aos contratos ferozes com os patrocinadores. Se não fosse o anonimato da mole, já fariam parte dos órgãos sociais e não havia presidente que não gostasse de lhes ouvir uma opinião atinada e salvadora.
O atleta entrou consciente do furor que faria junto das operárias desta Fábrica da Ilusão. Seguiu gingão para o quarto, olhando à volta com ar confiante, como se fosse um matador arrojado que domina o touro com os olhos postos na barreira. Mirando al tendido, dizem os aficionados. Riu muito, falou alto, achou-se grande, irresistível, sensual e provocador. A Solange precedeu-o, ufana e orgulhosa na sua condição de escolhida, para abrir caminho ao eleito, ao amante de todos os prazeres.
(Termina aqui o que os meus olhos viram e o que a minha sensibilidade interpretou. De ora em diante fala a brasileira nordestina, filha de um qualquer porto de galinhas onde a sua beleza exótica e o seu corpo irrepreensível não seriam suficientes para a tirar de uma bancada de artesanato alegórico. Falarei um dia sobre ela – e sobre as outras operárias deste estabelecimento quase fabril.)
O atleta entrou no quarto e nem terá olhado à volta para se ambientar ao lugar, para equilibrar a sua própria temperatura com a daquele ninho de satisfação onde a hora seguinte era sua por direito. Olhou para a Solange e não viu uma nudez extasiante, um peito perfeito, um rabo levantado, uma criatividade toda posta ao serviço do cliente. Não viu uma mulher – muito menos uma parceria onde a expressão negocial do win-win assumiria foros de plenitude. O futebolista terá olhado para a jovem que o acompanhava e leu-lhe no corpo, nessa volúpia em carne e osso, uma expressão poderosa, porém demoníaca: massa associativa.
De aí em diante comportou-se como se comportaria no campo depois de ter falhado todos os golos, errado todos os passes, titubeado em todos os lances, fugido a todos os contactos, vexado com todos os assobios. Vingou-se na Solange, exibindo uma atitude desagradável, agressiva, prepotente e malcriada, naquela convicção ilimitada de que o cliente tem sempre razão - inclusivamente num tratamento humilhante por quem presta um serviço. Usou apenas dez minutos dos sessenta a que teria direito, desfrutando da brasileira como quem usa um equipamento descartável e de baixa qualidade para o fim a que se destina. Nenhum ímpeto, grito, posição ou ordem cumpriu propósitos de erotismo ou fetiche. O futebolista fez com a Solange o que não podia fazer com a bancada.
Quando passou por mim revelou todo o seu desprezo pelas minhas características físicas. Foi como se o contacto com a realidade o enojasse ou, quem sabe, o aterrorizasse, e me visse, também, o remate que sai defeituoso, a visão de jogo que se não tem, a ilusão do podium que é esmagada por semanas a fio de desacertos.
Soubesse eu o que se tinha passado e ter-lhe-ia evidenciado ainda mais uma perna coxa, uma cicatriz feia e a frase lapidar: quando a sorte é maniversa, nada vale ao desinfeliz.
Cumpriu-se mais um dia.
MTS
2 comentários:
E a gente põe-se logo a sonhar num encontro entre o maniverso Fêquê e desinfeliz Amália... E o Fábio que se adapte, ora!RF
Claro que reparei logo à 1ª, mas, não conhecendo o autor.....
fq
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