Diário de Amália. Data irrelevante, mas podia ser 1 de Dezembro.
Está, seguramente, para além dos 60 anos. É um homem elegante, que se aprimora a vestir: um casaco espinhado verde-seco e uma gravata com motivos de caça em cima de uma camisa aos quadradinhos, ou um azul-escuro assertoado, com um lenço clássico, destes que não passam de moda, a tapar um pescoço levemente enrugado.
Senti-lhe, da primeira vez que o vi, um estremecimento com a minha cicatriz e a minha perna coxa, como se fosse o espanto incomodado de um monárquico perante a surpresa de um amanhecer republicano. Foi um instante, somente. Recompôs-se, aproximou-se do balcão e conversou comigo como se fossemos conhecidos de longa data. Percebia-se que era um homem com mundo, habituado a ambientes diferentes, onde se sentiria à vontade. Mais, pondo o seu interlocutor à vontade. Por ali se demorou cinco ou dez minutos, compondo os punhos da camisa para que se mantivessem discretamente abaixo da manga do casaco.
Quando inaugurou as visitas a esta Fábrica da Ilusão (regressa agora de dois em dois meses), pediu para falar com a Dr.ª Clara, que o recebeu com naturalidade. Veio despedir-se dele à porta do escritório com uns olhos sorridentes, um aperto de mão franco e um
- Sim, senhor conde, pode ficar descansado.
Voltando-se para mim, proferiu um só nome:
- Carmelinda.
Esta operária, alentejana de Bencatel, tem uma altura média, um peito generoso e uma cara jovial e sardenta. É dona de um sorriso franco e aberto a emoldurar uns dentes encantadoramente brancos e algo incertos. Está a fazer um mestrado em História da Alimentação, desenvolvendo um tema interessante: “O comer alentejano na década de 60 - a criatividade que disfarça a miséria”.
A Carmelinda vem buscar sempre o senhor conde à entrada, seguindo os dois de braço dado para o quarto onde estarão cerca de uma hora. Lá dentro o cerimonial é único, e só a Dr.ª Clara, a alentejana e eu é que sabemos o que se passa. Sigilo que faz parte das regras e que, sendo infringido, é motivo de dispensa imediata.
O cavalheiro senta-se no sofá, ajeita os botões de punho e as calças, que o vinco não se quer prejudicado, e dá uma indicação não verbal para que tudo se inicie. Nessa altura, a Carmelinda despe-se com um vagar calculado, abrindo botões e fechos
- Não se importa dá-me uma ajuda, senhor conde?
aliviando prisões, revelando à elegância do cliente um corpo moreno e cuidado. A coreografia é toda estudada e desenrola-se num semi-silêncio confortável. Já na sua nudez plena, a rapariga dá uma volta pelo quarto, soltando pequenas gargalhadas, perante o sorriso do senhor conde que nunca regateia um elogio simpático:
- Estás cada vez mais bonita, Carmelinda.
Ela ajeita os cabelos, descaindo-os discretamente sobre a generosidade dos seios e senta-se no chão alcatifado, aos pés daquele sexagenário. Então, durante os 45 minutos seguintes, a Carmelinda fala – num alentejano cerrado – sobre a sua família, as histórias da mãe, da avó, do comer miserável dos ganhões, da vida difícil e do trabalho de sol a sol, da apanha da azeitona, do montado de sobro, das caçadas, da brancura comovente das casas da sua terra, do calor e do frio, da fome, da senhora condessa, do preço da cortiça, da sopa de beldroegas, da lentidão da vida.
O senhor conde, sentado na sua poltrona, vestido com o seu casaco espinhado, as suas calças engomadas e a sua simpatia natural fecha o olhos e deixa-se invadir por sentimentos vários, em função da conversa nunca interrompida da alentejana: um sorriso nostálgico, uma lágrima teimosa, uma gargalhada sonora, uma advertência mansa e carinhosa:
- E se um dia perdes o sotaque, Carmelinda? Como vai ser?
Ela afasta a premonição, solícita, e continua o seu monólogo saudosista e regional. Ao fidalgo resta-lhe lembrar um passado de que já não sobra nada, a não ser um pedaço de cortiça que ele afaga discretamente no bolso do casaco, como se fosse a última peça, para além de um sotaque, que o mantém vivo. Cortiça que já foi sua, e que se escoou com tudo o mais numa mesa de jogo, enquanto um croupier sorria numa gentileza semanal:
- Vai a jogo, senhor conde?
Quando terminam, ele pousa-lhe um beijo ternurento na testa e afasta-lhe os cabelos para contemplar, pela última vez naquela noite, aquele corpo moreno, sardento, esplendoroso, que se lhe oferece desnudo à visão, como um latifundíário que olha uma seara que já não é sua, mas de um poker de reis adversário tirado à última carta.
Passa sempre ao balcão para se despedir, e fá-lo com elegância, simpatia e educação. Da última vez que cá esteve beijou-me a mão, enfrentou a minha cicatriz com a simplicidade dos homens que são maiores do que as suas desgraças e inquiriu:
- Boa noite, Amália e até daqui a dois meses. Sabe se temos cá alguém de Vila Viçosa?
Cumpriu-se mais um dia.
MTS