Sento-me neste meu banco.
O Sol incide, a calçada acolhe e reflecte a minha sombra, espectro negro que delimita o contorno de mim, preenchendo a breu o espaço que pelo chão vou assim ocupando.
Detenho-me a olhar esse preenchimento escuro que é imagem e delimitação, e que contrasta com a luz e claridade com que faz fronteira, nessa calçada que no mais permanece indiferente e alva.
E, num repente, acolho e afago essa sombra, porque descubro e sinto que esse breu é manto generoso e cúmplice que alberga e esconde, da devassa e pagode, certa essência própria, que requer a descrição de um negrume pelo chão, discreto e confundível com tantos outros que o Sol vai generosamente distribuindo.
Num gesto de apreensão de uma possível verdade e vontade, assumo que a sombra que me projecta na calçada não é apenas, e tão só, o fenómeno físico da reflexão dos raios solares incidentes sobre o meu ser, mas, mais do que isso, é um diapositivo, um diaporama de toda uma parte do meu eu, o qual, repudiado da construção sólida da minha esfinge pública, só lhe resta seguir-me, como um enjeitado de lucidez e consciência, pelo chão dos meus caminhos.
A sombra é cárcere de uma parte que, não tendo valia para estar no “eu” que se apresenta, segue rasteira, discreta e fiel, porque sabe que leva consigo uma parte real que forma e completa aquele que sombreia.
A sombra acolhe os expulsos da idealização social, da ambição de perfeição, dos paradigmas da virtude. É ela que guarda e transporta os medos, as infantilidades, as fraquezas, os descaminhos, as cobardias, os anseios, as quebras, as ambições, os desvarios, os caprichos, as fantasias. Em suma, as loucuras de cada um.
Cada um é, cumulativamente, o “eu” real e a sua sombra.
A sombra de cada “eu” pode variar, como varia a sombra de qualquer objecto com a posição do sol durante o seu iluminar. Sombra enorme, maior do que o “eu”pelo nascer ou fim do dia, ou bem pequena e filiforme pelo meio-dia.
Admito que importe para a felicidade, para a paz, para a coerência e compromisso das nossas vidas, que a sombra de cada um seja a sombra do meio-dia e não a enorme do nascer do dia.
A sombra imensa que nos domina e ultrapassa em tamanho deixa de ser um secreto esconderijo de um inevitável íntimo, para ser um fardo, um pesadelo, um adamastor.
Diz-me que hora de sombra é a tua, dir-te-ei a coerência e paz da tua vida.
Vamos, pois, restringir a nossa sombra, para que ela fique no meio-dia, no limite, portanto, da intimidade, secretismo, reserva a que todos temos o direito para o saudável exercício do individualismo, não publicável.
Para essa dimensão ajustada da sombra, é evidente que o maior contributo provirá da selecção dos valores que cada um faça, do cultivo de virtudes a que se dedique, da renúncia que consiga, ou seja, e resumindo, da eleição e vivência ética, moral, filosófica, religiosa, social que inspire cada um, e a que ele se subordine voluntária e dedicadamente.
Mas não é dessas escolhas, desses critérios, que eu queria aqui tratar. Queria partilhar duas ideias para a boa dimensão da sombra; queria meditar sobre dois particulares que tenho por importantes.
Para tanto, preciso ainda de fixar um pressuposto, precisamente que cada um já delimitou o conteúdo da sua sombra pelas tais opções éticas e demais que referi. Ou seja, a sombra está preenchida com o que resulta da natureza, formação, opções, ministérios de cada um. Agora há que reduzi-la para gerar mais felicidade, paz, coerência e verdade.
A primeira ideia é a de que podemos, e até devemos, incorporar no eu, visível e público, parte do que por pudor, hipocrisia, subserviência ao politicamente correcto relegamos para a nossa sombra.
Efectivamente, os hábitos, costumes, modos de vida, opiniões, pensamentos, sentimentos que sejam discrepantes, desconformes, até opostos aos da maioria, aos dos que nos são próximos nos vários círculos em que nos inserimos, não têm que rastejar na sombra e ser exercidos em secretismo por medo do que os outros possam pensar ou julgar.
A medida da nossa revelação aos outros não deve ser condicionada pela sua reacção, pela conformidade a um padrão pré-estabelecido e considerado conveniente, mas sim em privilégio à autenticidade, à verdade de cada um.
A diversidade numa comunidade enriquece, a particularidade soma valor ao grupo, a excentricidade revela oportunidades, o singular distingue.
Numa comunidade saudável, haverá lugar, espaço, aceitação para a diferença. Cada um deve e pode exercer-se como realmente é, em liberdade e sem pudores ou vergonhas.
O dever/querer agradar e estar alinhado com todos, com o padrão regra, transforma-nos em marionetes de peças de teatro, em embustes de pessoas, em hipócritas, sempre reprimidos e inevitavelmente maledicentes de tudo e todos, porque descontentes na nossa própria expressão.
A coragem de viver como realmente se é, de não se fazer fretes para agradar, de não se apagar num cinzentismo pardacento, em nome de uma pretensa harmonia e bem-estar, é uma atitude que “primeiro se estranha, mas depois se entranha” no colectivo, tornando-o realmente forte, coeso, dinâmico e verdadeiro.
Qualquer colectivo somente terá autenticidade e fortaleza quando um sorriso for de facto um rir, uma lágrima um chorar, um abraço um afecto sentido, um não uma recusa peremptória, e um sim um querer efectivo.
Quanto menor for a pantominice social, menor será a sombra que cada um carregará.
Se todos assumíssemos a libertação da respectiva sombra, com humildade e genuinidade, ficaríamos espantados com a revolução que se produziria nas relações, nos grupos, nos meios. Deixaríamos de ser patinadores no gelo das convenções, para sermos mergulhadores no âmago da condição humana.
O segundo pensamento vai no sentido de que o remanescente da nossa sombra, e que, como tal, deve ficar por corresponder à reserva de intimidade, é plano, território por excelência para ser revelado, partilhado e convivido com aquele ou aquela que amamos, numa cumplicidade existencial que dignifica, engrandecerá e fortalecerá, tornando única e sólida a relação, além de bem divertida…
O Sol incide, a calçada acolhe e reflecte a minha sombra, espectro negro que delimita o contorno de mim, preenchendo a breu o espaço que pelo chão vou assim ocupando.
Detenho-me a olhar esse preenchimento escuro que é imagem e delimitação, e que contrasta com a luz e claridade com que faz fronteira, nessa calçada que no mais permanece indiferente e alva.
E, num repente, acolho e afago essa sombra, porque descubro e sinto que esse breu é manto generoso e cúmplice que alberga e esconde, da devassa e pagode, certa essência própria, que requer a descrição de um negrume pelo chão, discreto e confundível com tantos outros que o Sol vai generosamente distribuindo.
Num gesto de apreensão de uma possível verdade e vontade, assumo que a sombra que me projecta na calçada não é apenas, e tão só, o fenómeno físico da reflexão dos raios solares incidentes sobre o meu ser, mas, mais do que isso, é um diapositivo, um diaporama de toda uma parte do meu eu, o qual, repudiado da construção sólida da minha esfinge pública, só lhe resta seguir-me, como um enjeitado de lucidez e consciência, pelo chão dos meus caminhos.
A sombra é cárcere de uma parte que, não tendo valia para estar no “eu” que se apresenta, segue rasteira, discreta e fiel, porque sabe que leva consigo uma parte real que forma e completa aquele que sombreia.
A sombra acolhe os expulsos da idealização social, da ambição de perfeição, dos paradigmas da virtude. É ela que guarda e transporta os medos, as infantilidades, as fraquezas, os descaminhos, as cobardias, os anseios, as quebras, as ambições, os desvarios, os caprichos, as fantasias. Em suma, as loucuras de cada um.
Cada um é, cumulativamente, o “eu” real e a sua sombra.
A sombra de cada “eu” pode variar, como varia a sombra de qualquer objecto com a posição do sol durante o seu iluminar. Sombra enorme, maior do que o “eu”pelo nascer ou fim do dia, ou bem pequena e filiforme pelo meio-dia.
Admito que importe para a felicidade, para a paz, para a coerência e compromisso das nossas vidas, que a sombra de cada um seja a sombra do meio-dia e não a enorme do nascer do dia.
A sombra imensa que nos domina e ultrapassa em tamanho deixa de ser um secreto esconderijo de um inevitável íntimo, para ser um fardo, um pesadelo, um adamastor.
Diz-me que hora de sombra é a tua, dir-te-ei a coerência e paz da tua vida.
Vamos, pois, restringir a nossa sombra, para que ela fique no meio-dia, no limite, portanto, da intimidade, secretismo, reserva a que todos temos o direito para o saudável exercício do individualismo, não publicável.
Para essa dimensão ajustada da sombra, é evidente que o maior contributo provirá da selecção dos valores que cada um faça, do cultivo de virtudes a que se dedique, da renúncia que consiga, ou seja, e resumindo, da eleição e vivência ética, moral, filosófica, religiosa, social que inspire cada um, e a que ele se subordine voluntária e dedicadamente.
Mas não é dessas escolhas, desses critérios, que eu queria aqui tratar. Queria partilhar duas ideias para a boa dimensão da sombra; queria meditar sobre dois particulares que tenho por importantes.
Para tanto, preciso ainda de fixar um pressuposto, precisamente que cada um já delimitou o conteúdo da sua sombra pelas tais opções éticas e demais que referi. Ou seja, a sombra está preenchida com o que resulta da natureza, formação, opções, ministérios de cada um. Agora há que reduzi-la para gerar mais felicidade, paz, coerência e verdade.
A primeira ideia é a de que podemos, e até devemos, incorporar no eu, visível e público, parte do que por pudor, hipocrisia, subserviência ao politicamente correcto relegamos para a nossa sombra.
Efectivamente, os hábitos, costumes, modos de vida, opiniões, pensamentos, sentimentos que sejam discrepantes, desconformes, até opostos aos da maioria, aos dos que nos são próximos nos vários círculos em que nos inserimos, não têm que rastejar na sombra e ser exercidos em secretismo por medo do que os outros possam pensar ou julgar.
A medida da nossa revelação aos outros não deve ser condicionada pela sua reacção, pela conformidade a um padrão pré-estabelecido e considerado conveniente, mas sim em privilégio à autenticidade, à verdade de cada um.
A diversidade numa comunidade enriquece, a particularidade soma valor ao grupo, a excentricidade revela oportunidades, o singular distingue.
Numa comunidade saudável, haverá lugar, espaço, aceitação para a diferença. Cada um deve e pode exercer-se como realmente é, em liberdade e sem pudores ou vergonhas.
O dever/querer agradar e estar alinhado com todos, com o padrão regra, transforma-nos em marionetes de peças de teatro, em embustes de pessoas, em hipócritas, sempre reprimidos e inevitavelmente maledicentes de tudo e todos, porque descontentes na nossa própria expressão.
A coragem de viver como realmente se é, de não se fazer fretes para agradar, de não se apagar num cinzentismo pardacento, em nome de uma pretensa harmonia e bem-estar, é uma atitude que “primeiro se estranha, mas depois se entranha” no colectivo, tornando-o realmente forte, coeso, dinâmico e verdadeiro.
Qualquer colectivo somente terá autenticidade e fortaleza quando um sorriso for de facto um rir, uma lágrima um chorar, um abraço um afecto sentido, um não uma recusa peremptória, e um sim um querer efectivo.
Quanto menor for a pantominice social, menor será a sombra que cada um carregará.
Se todos assumíssemos a libertação da respectiva sombra, com humildade e genuinidade, ficaríamos espantados com a revolução que se produziria nas relações, nos grupos, nos meios. Deixaríamos de ser patinadores no gelo das convenções, para sermos mergulhadores no âmago da condição humana.
O segundo pensamento vai no sentido de que o remanescente da nossa sombra, e que, como tal, deve ficar por corresponder à reserva de intimidade, é plano, território por excelência para ser revelado, partilhado e convivido com aquele ou aquela que amamos, numa cumplicidade existencial que dignifica, engrandecerá e fortalecerá, tornando única e sólida a relação, além de bem divertida…
6 comentários:
Hoje sorvi-o até à ultima gota, e não pude deixar para depois falar-lhe..
Sublime.
Quando aceitamos a luz e a sombra em nós, o quente e o frio, o masculino e o feminino, o cheio e o vazio, o sol e a lua em nós, poderemos ser mais felizes.
Poderemos aceitar verdadeiramente quem somos, amarmo-nos como um todo e equilibrar as tensões opostas que nos corroem. Aceitar a diferença, o genuino, sem culpas, sem bichos papões religiosos, sociais,...
Aceitar quem De Facto Somos, e ajustar valores, recuperar valores ou implementar novos valores, que ecoam em nós porque os sentimos, e não porque nos impõem. SER de verdade, plenamente, sem medo da crítica, da opção colectiva, do outro.
Aquilo que mais escondemos dos outros, a sombra que mais ocultamos e nos sentimos culpados, tira-nos força de Sermos, e de Sermos melhores, enfraquece-nos...
"todos temos tudo cá dentro", todos somos pólos contraditórios em busca de harmonia, mas ela só acontece quando aceitamos o que somos, e o transmutamos, só assim se dá a verdadeira Alquimia.
Bem-haja amigo,
um abraço
a.
Mais uma vez, esta quarta feira fiquei mais rica, mais cheia, mais Eu. Obrigada por este Largo, tão largo que há lugar para todos...
t
Perfeito! Não lhe mudava, se pudesse ou conseguisse, uma vírgula ou um pensamento! Uma maravilha! Superou-se, ATM! O meu interesse pelo Largo da BH aumenta de semana para semana... Adorei o comentário de a., a propósito...
pcp
ATM....
De facto é obrigatório pensar sobre isto tudo.
A "Sociedade" força o Ser a não ser..
Mas há que Ser pelo menos recto e genuino.
Caso contrário seremos sempre os hipócritas e subservientes do políticamento correcto.
Peter Pan perdeu a sua sombra, e não descansou enquanto não a recuperou. Todos temos a nossa.... mas que tem de ter a dimensão, para sermos "sempre iguais"!!
O que de certa forma nos torna felizes,equilibrados e também, não menos importante, podermos estar divertidos no nosso banco da vida.
Só posso concordar e subscrever..
Um grande abraço
A.A.
ATM,
Quando esta semana nos leva a esta profunda viagem interior, e neste pensamento tiro a frase ao JdB, "nesta minha condição de católico", penso, Precisas de provas de Deus?
Alguém acende uma vela para ver o Sol?.
Sol este que nos dá a sombra do meio-dia, que nos dá a escuridão, para que no silêncio a Alma receba para dar mais na acção.....
Bom silêncio, para todos esta semana, enquanto esperamos por mais uma viagem naquele mágico Banco, por onde passei milhões de vezes e nunca me sentei, até agora, e onde passo tantas horas da minha semana.
Bem Haja
ATM
Mais uma vez sublime.
O seu segundo pensamento empurrou-me para a importância de procurarmos ser o sol do meio dia dos que amamos e do bem que nos faz a companhia dos que nos iluminam e divertem.
Volte sempre.
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