09 março 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, le 14 Juillet

Georgette, uma das nossas operárias, é uma francesa lindíssima e elegante. Com mais de 1,80m, tem uma pele clara, muito clara, por vezes tão transparente que se lhe vêem as veias. Podia facilmente ter sido modelo, encantando as passerelles com vestidos bizarros de tules transparentes, uns cabelos pretos e longos, um nariz fino, duas maçãs do rosto ligeiramente salientes e um corpo de fazer inveja aos mais sadios. Optara, no entanto, por terminar os seus estudos na Sorbonne, com um trabalho intitulado “A prostituição na epistolografia Portuguesa”, e decidira vir a Portugal fazer aquilo a que chamou, metaforicamente, um estágio. Os contactos com a Dra. Clara tiveram a brevidade só possível a quem se entende à distância: selectividade e ausência de ordenado, que a tarefa era de índole mais social do que sexual.

Os seus clientes, poucos, são quase todos franceses, embora haja portugueses saudosos de um tempo em que o idioma de Proust e de Balzac era língua rainha, falada com fluidez diplomática entre salões de embaixadas. Um tempo que evidenciava um berço da cultura mundial que gerara escritores sem par. Os clientes eram, no fundo, gente que não se tinha habituado a um planeta que usava o inglês como língua franca. No quarto de Georgette a argumentação era demolidora: a estátua da Liberdade era oferta do povo francês e o único esplendor no cinema norte-americano era, de facto, uma frase proferida tendo como som acompanhante o rosto mais bonito da história do cinema e um avião que voaria de Casablanca para Lisboa: we’ll always have Paris.

Numa tentativa de evidenciar, a quem de direito, que a sua passagem por Portugal se revestia de uma roupagem genuína, Georgette decidiu escrever cartas, em português, ao namorado parisiense, um emigrante de segunda geração ainda lembrado da língua de Camões. Pediu, por isso, à Dra. Clara que lhe indicasse alguém que soubesse francês o suficiente para traduzir directamente. Ela ditaria, en français, alguém escreveria, en portugais. Foi-lhe referido o professor Carlos, que lecciona francês numa escola C+S da Costa do Estoril e que já se tinha interessado por ela. É um homem de altura média, cabelo castanho claro, fumador ocasional de cachimbo e que despreza profundamente o império britânico que, diz, gerou canalha e saque no mundo onde se instalou.

O professor Carlos sentou-se numa poltrona do quarto de Georgette enquanto esta, vestida e em circulação permanente, lhe vai ditando cartas ao sabor do improviso e da procura da melhoria contínua:

Meu amor. Saberás tu o vazio em que se tornou o meu mundo com a tua ausência? O sol reveste-se de uma negritude funesta, as flores murcham invadidas por uma tristeza imensa; as andorinhas, que por aqui passavam para me dar novas da tua vida, desapareceram. Portugal sem ti não é nada, não é ninguém. É apenas um país engolido pelas brumas da minha saudade, com o odor do afastamento que se entranha na alma, carcomendo-a de desejo. Redige-me cartas de amor, sussurra-me palavras escritas.

Georgette vai ditando e, no uso de uma característica que lhe permite fazer duas coisas em simultâneo, despe-se ao ritmo das palavras. Quando dá ênfase à expressão o sol perdeu, solta o colchete último que a separa de uma nudez parcial e revelada ao professor de uma escola da Costa do Estoril. Carlos, de seu nome, sente um tremor que lhe perturba a caligrafia, transpira de umas mãos que entende deverem estar ocupadas a calcorrear solo francês cheio de aromas imaginados e despojado da alta costura que o separa do corpo. Quando Georgette menciona a frase que o cliente entende traduzir como carcomendo-a de desejo, já não lhe resta nada, a não ser uma alvura desejosa, umas pernas esguias, um peito que cabe, ele todo, na palma de uma mão. A finalista da Sorbonne está nua, e as veias que se destacam daquela pele clara consomem o professor ao ponto do desvairo.

A francesa interrompe a dicção e sorri numa evidência de convite. Carlos atira com papel, caneta, tradução, roupas incómodas, cachimbos semi-apagados. Abraça-a, beija-a, retém-na nos braços, sente-lhe o corpo todo, imagina-se a possuir la belle France e a ficar impregnado de Victor Hugo, Yourcenar, Sartre, Georgette. Murmura-lhe frases tórridas ao ouvido – em francês, que alguns asseguram ser o idioma do amor. Quer escrever-lhe cartas na pele, tapar cada centímetro de lascívia com erotismos gauleses, revestir-lhe a pele ebúrnea de sensualidades gravadas num itálico único.

- Essa carta de amor é uma falsidade, mon amour. A Georgette só diz mentiras…

A francesa sorri e enrola um caracol na ponta dos dedos finos e longos. O professor segue-lhe uma veia com a ponta dos dedos, e sente que esta artéria é uma espécie de radial que contorna o mundo gaulês.

- São palavras bonitas, Charles. E tudo o que é indiscutivelmente bonito encerra, em si, uma parte de verdade e outra de mentira. N'est-ce pas?

Ao longe, da janela aberta de uma vizinha que tem o hábito de ouvir música alto, ouvem-se melodias de sempre. Georgette oferece-se de novo - e naquele corpo está Paris, o Loire, a moda, o glamour, os perfumes de França - um esplendor de ofertas à voragem ocupante. Tony de Matos, o artista que nunca morreu, vai cantando

Cartas de amor
Quem as não tem
Cartas de amor
Pedaços de dor
Sentidas de alguém
Cartas de amor, andorinhas
Que num vai e vem, levam bem
Saudades minhas
Cartas de amor, quem as não tem

Cumpriu-se mais um dia. À bientôt.

MTS

2 comentários:

Anónimo disse...

MTS,
Por momentos ao ler este "Diário", senti que estava a reler aquela grande obra "O Perfume".
Deixou aqui uma mistura de sabores, cheiros, sons etc.
Obrigada por mais este momento de prazer...
Até para a semana!

Anónimo disse...

MTS, vc hoje excedeu-se! Parabéns! RF

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