28 março 2009

Zé-Brasileiro, Português da Sertã, em Amor e Uma Cabana

Passava noites a farejar os passeios de ruas e praças. Percorria os bairros da cidade onde vivia a fina flor, porque sabia que essa gente deitava fora muita coisa boa. Móveis cheios de bicho, como crivos de regador, divãs desengonçados, peças fora de moda, louça esmonada, tapetes desbotados. Em cada ronda nocturna havia sempre novidade. E se o caso fosse de partida definitiva, até cão e gato integravam os desperdícios. Aquela mania não tinha nenhum fim directo. Nem restauros, nem lojas de velharias, nem feira da Ladra, nada. Só o gozo de vaguear de noite e uma valorização exacerbada a cada objecto usado, exactamente por isso: por ter vivido no meio de gente, dentro de casas de família, por ter sido adorado ou odiado, por ter uma história, grande ou pequena, triste ou feliz. No fundo, além de matar a insónia, Zé vingava a sua aposentação naqueles trastes que, de um dia ao outro, perderam utilidade.

Chegara do Brasil. José do Nascimento Alves, emigrante português no Estado de São Paulo, era o legítimo herdeiro do prédio rústico onde nasceu, numa freguesia da Sertã. Único filho de Justino Alves, dono e senhor de três campos sobre o Zêzere e uma casa agora em pronunciada ruína. Não é coisa que se mostre a dôna Neide. Mesmo com tanta terra para cultivar. Neide vai virar uma leoa quando vir a casa. Pobre Justino, vivera em Lisboa a correr para a terra, para hoje ser quase um matagal. Neide, você tem que ver... beleza, minha nega. ‘Cê vai gostar e eu tô ta precisar Neidinha. Zé desbravava silvas em cada telefonema, depenava-se em saudades, preparava a mulher nas entrelinhas. Daqui vejo o Tejo, azul, o céu de Lisboa, mais azul ainda. ‘Cê vai adorar. Como te falei, a roça de meu pai tá meio abandonada, mas vou dar um jeito. Aquilo lá é lindo, também com o rio passando. Aqui é muito calmo. O bairro Neide, chama-se do Alvito, tá na cidade mas é tranquilo demais, num lugar vizinho de bosque. ‘Cê vai ver, ‘cê vai adorar. Ah, Neide, chora não, logo logo tá tudo pronto pra você chegar. É só que tenho de tratar da papelada e isso demora um pouquinho. Tá Zé, mas eu preferia qu'ocê voltásse... Sobre isso a gente conversa depois Neide, agora me deixa tratar e quando for a hora Jerônimo te leva no avião.

As quatro décadas de vida do outro lado do mar timbraram-no logo de diferenças. Por fora, Zé era um parolo lavado e sempre claro. Camisas brancas, calças e casacos creme, coletes riscados, bonés de linho, sapatos abertos. Este José, que pelas costas lhe chamavam “o Brasileiro”, ainda era mais claro na educação: todo vénias, palavras novas, carinhas doces. Que na penumbra o Brasileiro saía do Alvito à caça de quanta porcaria houvesse, largada nos passeios por muito boa gente, é que ninguém diria. Por dentro, Zé não era tão claro assim. O fim da carreira de faz-de-tudo até ser Dono de Loja e a separação já longa da sua velha e boa dôna Neide, uma mulher cilíndrica que há anos aquecia os pés e o caldo do Português, apertavam-lhe o peito, tingiam-lhe a alma e mostravam-lhe uma nova estrada a construir. Zé queria trazer a Neide para este lado e a pior dificuldade era convencê-la a ficar. Neide não queria largar a sua horta nas traseiras, nem o papo com a jararaca da vizinha.

Enquanto driblava esta pedra no sapato, Zé olhava a quinquilharia recolhida na noite. Mexendo na coisa veio um cheiro. E parece que foi desse cheiro que surgiu uma ideia na cabeça do Brasileiro entrincheirado entre o seu país e dôna Neide. E se eu pegasse nisto e levasse tudo para lá... Ah meu Deus, mas como é que eu não pensei nisso antes? Vou botar aquela roça a brilhar, pombas! Vou concertar tudo isto, vou montar a casa mais linda do mundo. Ah Neidinha, santinha do meu coração, me aguarda. No clarear do dia seguinte Zé Alves tirou um bilhete na Estação, apanhou a Rodoviária e chegou a Palhais, a sua aldeia, pelo meio-dia. Procurou o Padre e resolveu a vida. Voltou três semanas depois com a carrinha atascada até cima. Levava tudo e mais ainda. Ficou por lá uns quinze dias, na guarida do vigário que bem conhecera Justino Alves, serralheiro prestigiado da Lisnave. O bom filho à casa torna, começou o padre informando o povo. Ao Zé, tudo correu de feição. Só faltava o calor, a voz, a sopa e o cafoné de dôna Neide.

Trabalhou entusiasmado. Já tinha instruído Jerônimo para mandar dôna Neide prá Metrópole. Jerônimo entrou de marçano na loja e criança que era fez-se como um filho. E quis o tempo que se fizesse sócio-gerente também. Tá tudo marcado Seu Zé. Dôna Neide parte dia 20, chega dia 21 no Aeroporto da Portela, aí em Lisboa. Certo Seu Zé, deixarei ela na porta do avião. Pode ficar descansado. Neidinha suou tudo naquela viagem. Vinha até mais delgada mas assim que viu o seu Português, largou as malas e esqueceu os 80 quilos até ele. Puxa Zé, você tá chupado. Ainda bem que te trouxe uma moqueca bem temperada. Nessa noite os dois comeram de janela e de olhos escancarados. Mais de trinta anos sem um único dia de separação e desde o Carnaval sem se verem. Era já fim de Julho e fazia calor. Que tal Neidinha? Não vai dizer que tá triste... Sabe o que é Zé? Tô com medo do futuro. Qué isso, minha velha?! ‘Cê tá comigo tá com Deus, ué? Agora vem, vem deitar que amanhã tenho um presentão pra você.

E tinha. José do Nascimento Alves, Brasileiro em Portugal, Português no Brasil, herdeiro em Palhais, comerciante em São Paulo, depois das devidas vénias e apresentações no Bairro Económico do Alvito, meteu dôna Neide na carripana e seguiu à Beira Baixa. Fala Zé, o que é que você tá tramando? Se aquieta Neide, quando chegar você vê. O medo persistia. Não vai querer ficar. Quando Zé espetou o dedo a um portão verde-triste, dôna Neide gargalhou. Você botou o meu nome aí? Espectáculo Zé! Foram entrando. Primeiro, uma carreira comprida e ao fundo uma casinha caiada. O português não se calava. Isso aqui é tudo provisório Neide. Com o tempo vamos fazer uma casa de verdade com tudo o que você merece. Já viu quanta terra para cultivar? Até jardim pode ter. A mulher nem o ouvia, esbugalhada que ficou quando o Português abriu a porta e correu a levantar o toldo. Dôna Neide ia tendo um troço. Parecia um quadro. Uma Natureza viva. Metade da casa estava lá fora, debaixo de uma tenda. Nossa Zé! Como você arranjou tudo isso? Tá lindo... Gostou mesmo? Ah, ‘cê me enviou no paraíso, seu safado sem nome... Sabe Neide, na viagem tomei uma decisão. Forçar você a ficar em Portugal não tá certo. E ontem a tua moqueca me deu umas saudades do Brasil... já não sei de que terra sou Neide. Vamos dividir o resto da vida cá e lá? Isso Zé! Mas promete que não vai destruir essa cabana linda que ‘ocê fez pra mim. Tá certo minha flor. Agora vamos ao rio.

DaLheGas

5 comentários:

maf disse...

DaLhe, era tão bom que na vida real as coisas corressem sempre assim tão de feição para os Zés-Brasileiros ou para os Rubens-Portugueses. Linda história de amor, você é uma eterna romântica:-)

DaLheGas disse...

e o que diz o tubarão à tubarona? tu bararalhas-me :))

a. disse...

Noooossa, Ocê é danada, minina...

prá contá histoia então, vixe, sai di baixo

:)

DaLheGas disse...

pôxa a. tava a ver que a tinhamos perdido. livre-se de se evaporar sem deixar rasto. eu boto a interpol na sua senda 'viu minina?

a. disse...

tô vendo ca minina tá na área, xii patrão, ela é fogo!

eu tô sempre sanzando por aí (ou aqui) ehehe, nem sempre tenho vontade de botápráquébrá, né, ?

mi deicurpa, viu, tem geito não, sô memo assim

mais vou botando meu olho (qui nem sempri lê!), trais pála junto grudada na boca, num leva a mau , não, viu?
libera a interpol do meu cangote, faxabô

abraço em ocê, inté dispois

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