23 março 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, data irrelevante

Contam as más-línguas que o Sr. Carlos Santos foi um militar feroz, implacável, cumpridor à risca das ordens que lhe eram transmitidas ou que ele próprio ditava aos seus subordinados com uma voz possante de militar inato. Nas várias missões que cumpriu em Moçambique, há quem o diga, terá sido protagonista de pequenas atrocidades – não suficientemente grandes para terem interesse jornalístico, mas significativas bastante para ficarem gravadas na mente de quem o acompanhou. Homem lembrado pelos seus camaradas - pelos melhores e piores motivos - consta que exerceu as suas várias funções com mão de ferro.

Quando veio pela primeira vez a esta Fábrica da Ilusão, passou pelo gabinete da Dra. Clara para, a seu pedido, conversarem um pouco. Apesar dos seus quase 60 anos, é um homem forte, encorpado, revelando uma excelente preparação física construída em ginásio, não só por gosto próprio, mas também pelas funções que exerceu de segurança privado – a pessoas ou estabelecimentos da noite. Tem um ligeiríssimo tique que se traduz por um tremor quase imperceptível do lábio superior e, refere quem o conhece, um discurso político marcado por laivos de racismo.

Quando a Dra. Clara assomou à porta do gabinete e, com o antigo militar de lado, me disse apenas

- Amália? Chame a Honória, se faz favor

desconfiei, por um segundo apenas, da lucidez da escolha.

A Honória é uma moçambicana da Beira, da Manga, onde a família vivia juntamente com grande parte dos seus conterrâneos. Filha de uma empregada doméstica que servia uma família no Macúti, foi confrontada com a morte do seu pai, um guerrilheiro da Frelimo, às mãos do exército português. Tinha um ano, e a guerra colonial acabaria daí a poucos meses. As circunstâncias próprias da vida trouxeram-na para Portugal, onde termina tardiamente o curso de História, depois de ter investido parte do seu tempo na investigação da guerra colonial em Moçambique.

É uma mulher lindíssima. Alta, magra, tem uns olhos esverdeados e um cabelo negro e volumoso. É de uma discrição rara, pois nunca levanta a voz, e queda-se por largos momentos num silêncio emoldurado por um sorriso genuíno e uns dentes sem defeito.

Levou o Sr. Carlos Santos - ou o Sr. Alferes, como também é aqui tratado - para o quarto. Pôs música moçambicana como acompanhamento de fundo e sentou-se no sofá, vestida de uma forma simples com uma T-shirt e umas calças de ganga. O ex-militar despe-se numa atrapalhação constrangedora e, por fim, nu e de braços caídos ao longo do corpo, murmura uma frase sumida, contrastante com a sonoridade com que gritava comandos aos seus soldados:

- O que queres que faça agora, Honória?

Honória não responde. Pela sua cabeça passam as memórias de um pai de que não se lembra mas que foi entregue à família morto e crivado de balas. Recorda-se da mãe que lhe falava na praia do Macúti, da marginal por onde passeavam as famílias que ali viviam, do pôr-do-sol que nunca mais encontrou igual. Levanta-se e, independentemente de uma música que toca baixo mas com um ritmo batido, há um silêncio que dói. Honória despe-se em frente de Carlos Santos, revelando uma pele escura e sensual, um peito que não é mais do que uma duna suave, umas pernas esguias que parecem não ter fim, umas nádegas que mantêm o encanto das coisas perfeitas. Volta então a sentar-se no sofá, de onde não se levanta.

Durante aquela hora contratuada, o militar fica em pé, nu e de braços caídos. Num sofá de vime com umas almofadas cor de terra africana, a moçambicana senta-se, distende as pernas, muda de posição, apanha o cabelo, passa uma mão lânguida pelo corpo, fecha os olhos, corre a língua viscosa por cima de uns lábios grossos. Quando a hora está a chegar ao fim, a estudante de História dá-lhe um beijo longo, sensual, erótico, carregado de desejo. Não o deixando nunca tocá-la, fala-lhe numa voz mansa e baixa, desprovida de qualquer raiva, lembrada apenas da mãe, Luísa, que lhe falava do pinheiro da praia onde ia com os seus três meninos ao fim da tarde jogar às escondidas:

- Volta para o mês que vem. Nessa altura sim. Agora vai.

Quando passa por mim na entrada e se despede, o alferes Carlos Santos tem os olhos avermelhados de quem chorou copiosamente. O lábio treme com mais força. Ainda olha para trás, mas Honória já lá não está, porque o seu silêncio a leva de volta à Beira, aos meninos de quem a mãe tomava conta, a um pai que lhe foi entregue inútil e desfeito. Ao beijar o ex-militar, Honória dá o primeiro passo no sentido da reconciliação com o seu passado, encerrando numa gaveta a sua investigação sobre a guerra colonial. Daí a um mês, naquele mesmo quarto, dirá ao alferes Carlos Santos, militar que foi feroz e desapiedado dos seus inimigos:

- Não me possuas. Ama-me.

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

3 comentários:

Anónimo disse...

MTS,
Bilhante.
A História deixa mágoas, mas o ser Humano tem a tendência de se apaziguar consigo próprio para conseguir sobreviver.
Será que se vestirem novamente uma "farda" ao alferes, alguém o vai conseguir amar....
Até para a semana.

Anónimo disse...

nem por nada, perderia um destes folhetins. Brilhante, MTS, a escrita, a imaginação, a ousadia ... sem qualquer falha, excepto o facto de nos deixar 'aguados' até à próxima 2ª feira.
:-)

Anónimo disse...

Parabéns, MTS - hoje sublime! RF

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