18 março 2009

Largo da Boa-Hora

Sob o sol primaveril que ilumina o largo e dá ares de talha dourada a este meu banco, pergunto-me qual o maior tesouro da nossa vida, qual o valor mais precioso que nos é concedido.
Considero e pondero, detalhada e cuidadosamente, as várias fortunas de que dispomos, e, depois de muito examinar e peneirar, consigo eleger aquela que é a riqueza superior às demais, a rainha das nossas venturas.
A primeira surpresa deste meu exercício é que não suspeitava que o elencar sistemático e exaustivo dos “activos” originasse um rol tão extenso. Fiquei surpreso com a multiplicidade de “bens” que compõem a nossa vida, assim como com a suficiência formada pelo conjunto: “tanto mar têm os nossos barcos para navegar”.
Também me impressionou quanto a riqueza material se desvaloriza no “ranking”, quando em concurso com as riquezas espirituais. A matéria é pó quando comparada com a essência, com a alma, com os sentimentos.
A rainha das venturas, é haver quem precise de nós. Não me refiro a alguém indeterminado da comunidade, mas a alguém em concreto, a que estejamos ligados por laços de amor. De igual modo, não me refiro apenas a uma pessoa, mas às pessoas que, por causa desses específicos e particulares laços de amor, formam o nosso núcleo existencial.
A grande riqueza é esta certeza, este saber convicto, de que para alguém somos contributo decisivo para o seu bem, para a viabilidade da sua felicidade, para a realização dos seus sonhos, ambições, projectos, e tudo o mais de construção de uma vida.
Do mesmo modo que para esse alguém somos bálsamo, refúgio, ajuda nas tristezas, desalentos, dores e infortúnios, acompanhando derrotas e medos, testemunhando inquietudes e angústias, suavizando remorsos e erros.
Para esse alguém somos espelho que não consente máscaras, dispensa maquilhagens e disfarces, somos procurados para reflexo da verdade, e não camarim de actor.
Para esse alguém somos parte e condição da vivência, da alegria e da tristeza.
Olhar e ver, ouvir e escutar, falar e dizer, tocar e sentir, consumam-se na partilha com esse alguém que nos precisa.
Para esse alguém somos, afinal e sempre, bordão de peregrino na romagem da vida.
Essa utilidade, necessidade, enche-nos de felicidade e encantamento, dá-nos sentido à vida, é estrela polar que marca o nosso norte e empalidece as tantas constelações celestiais que brilham, apontando outras direcções e rumos.
Servir esse alguém é vocação bastante, é missão suficiente para todo o “eu” fazer sentido, para o “eu”acontecer por uma causa e não por mera casualidade.
Sem esse alguém seriámos, provavelmente, seres erráticos, desnorteados, por não ter de quem ser bordão.
E este ser bordão é condição inesgotável, porque a cada nascer do sol se renova a oportunidade de continuar a caminhada. Há sempre um amanhã e há sempre mais caminho, até ao fim da longa jornada.
Nunca a missão está completa, nunca a vocação está saciada, regenera-se no dia-a-dia e essa continuidade é, por natureza, a fonte da tranquilidade.
Trata-se de uma dependência desejada e consentida, fruto de uma reciprocidade de eleição do bem mais precioso, com a assunção de que amar é querer ser o bordão do outro, e desejar que o outro precise que nós sejamos o seu bordão.
Muitas formas existem para definir o amor, para o demonstrar e para o viver quotidianamente.
Este texto é sobre o amor, tendo seguido uma dedução que me conduz à definição que o amor é, metaforicamente, ser eleito o bordão do outro, que é, reciprocamente, o nosso bordão.
Focando-nos agora e exclusivamente no amor entre pares (deixemos, pois, o filial, parental, fraternal, em que somos bordões por tempos ou ocasiões) três notas finais completam o quadro que quis esboçar.
A primeira, é no sentido de que, enquanto cada um se revir e sentir como bordão do outro, a relação se manterá forte, leal e segura, apesar das vicissitudes surgidas no caminho. Enquanto a mão amada me segurar como seu bordão (e vice-versa) os sulcos e obstáculos do caminho serão ultrapassados e vencidos, desaparecendo na curva do caminho.
A segunda é que a mão e o bordão vão envelhecendo e desgastando-se juntos. O que ambos perdem em qualidades de juventude ganham em conhecimento, ajeitamento e confiança, cada dia mais moldados, cada dia mais calhados; os nós das mãos conhecem os nós do bordão e sabem senti-los.
A terceira é que a jornada a dois termina, definitivamente, quando por razões que a razão desconhece, o bordão, antes amparo indispensável, se transforma em objecto inútil, empecilho de caminhadas ou estradas diferentes que se querem calcorrear ou percorrer.
Para mim basta-me esta metáfora.

ATM

6 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns por este texto tão bonito.
Peço a Deus que os nossos bordões nunca se tornem inúteis.

AJ disse...

Citando:

«Esplendorosa face, nocturna face,esta daquele que escreve diários, a si mesmo se tomando como matéria e como axis mundi, descentrando-se embora para si regressar. Quem os lê, neste grau de excelência e perfeição, enreda-se neste labirinto de que não sabe escapar - nem quer perante o prazer que proporciona este livro denso, por vezes risonho, outras vezes sombrio, à espera de nós atrás do espelho onde - quem sabe - um outro rosto, o mesmo de sempre , se perfila vigilante.»

Parabéns ATM

Anónimo disse...

Mais uma vez fiquei sem palavras. Que coragem.
Falar de amor, de entrega total, de partilha, da necessidade de o demonstrar e o viver quotidianamente. Só quem vive esse amor é que o consegue descrever desta forma. Fico feliz por saber que ainda existe.
Eu também já o tive.
Volte sempre.

Anónimo disse...

de volta, depois de uma prolongada ausência, re-entro de mansinho neste Blogue e deparo-me com mais um esplendoroso texto do ATM ... desta feita, sobre o Amor.
Parabéns, ATM, por ter esse bordão, por ser esse bordão e pela coragem e clareza com que escreve sobre o mesmo.

Anónimo disse...

ATM,
O sentido que tem este Bordão para si, é o mesmo que tem para mim a VELHA ÁRVORE.
Velha árvore esta, que existe numa FLORESTA MÁGICA, onde:
1º. uma flor, folha, ramo, bolota ou fruto da floresta mágica, depois de colhidos podem conservar-se semanas ou meses sem detiorar-se.
2º. os perfumes ou essências libertadas pelas plantas da floresta mágica são intensos, penetrantes e doradouros. Facto esse que se deve às referências nobres do solo e do sub-solo
Desde a noite dos tempos que o Homem sábio, procurou abrigo e conselho na Floresta Mágica.
A Velha Árvore representa todos os nossos antepassados, o Amor,e nós lá pequeninos a crescer para ser também VELHOS, mas longe de sermos Sábios.
A Floresta Mágica é isso mesmo, MÁGICA.
Abriguemo-nos a crescer na Floresta.
Até para a semana.....

a. disse...

O seu texto é muito romântico, ATM, e bonito e verdadeiro também.

Procuro as melhores palavras, para lhe dizer o que penso...

Eu não vejo o "haver quem precise de nós", dessa forma, como a rainha das venturas como lhe atribuiu.
Entendo, aceito, admiro, (...) a "força" de ser bordão e ter um bordão (ou muitos) na vida.

Mas já viu, o desencanto, ou o desamparo, ou a "infelicidade", ou desventura, quando esse alguém, tão bordão, tão esteio, tão "insubstituivel" desaparece das nossa vidas?
Acho que é a ideia implícita, em si que me retrai, a ideia lírica de que somos precisos, que nos alimenta o ego, o sabermo-nos indispensáveis.

Acho que é a ideia de me sentir menos por alguém próximo faltar, quando na vida partilho caminhos, afectos, vivências, dando azo ao Amor, à Fraternidade, à Verdade. Eu sou bordão e sinto-me bordão, em qualquer momento/espaço/tempo/ que sinta que sou precisa, independentemente de o Outro o ser para mim. Sem troca. Se ela existe, tanto melhor.

Não consigo sequer imaginar a terceira nota que menciona. Transcende-me a ideia de alguém que já foi esse Bordão indispensável, poder se tornar em algo inútil, para mim não faz sentido isso...
E falo pelas minhas próprias e recentes experiências.
Não consigo imaginar "descartar" a imagem de alguém que foi muito e profundamente importante na minha vida, por "razões que a razão desconhece" , tornar-se num empecilho a evitar, mesmo que as estradas sejam outras...

Os caminhos podem divergir, mas se foi bordão, não passará nunca (comigo) a ser cajado, no sentido ofensivo.

Ser e envelhecer bordão com alguém na mesma sintonia, é maravilhoso. Se entendermos que essa partilha é uma dádiva, uma mais valia na vida, um bem precioso que temos a oportunidade de experienciar, uma benção que um dia (inevitavelmente) chegará ao fim.
Quer queiramos, quer não.

(e creia, não amo menos, ou me entrego menos, ou partilho menos, ou sirvo menos, ou demonstro menos afecto, ou sinto menos, por pensar assim)
a.

Acerca de mim

Arquivo do blogue