Diário de Amália, dia de todos os encontros.
Pouco passava do meio-dia quando a Joana Maria me veio entregar uma carta para ser posta no correio.
- Importas-te, Amália? É para o meu Pai...
Naquele preciso instante entrou o carteiro com uma carta para a Joana Maria.
- Sabes, Amália? É do meu Pai...
A minha espinha foi percorrida por um frio. O meu balcão, onde recebo clientes e os entrego nas mãos das raparigas para horas de volúpia e luxúria, foi palco de uma coincidência extraordinária – duas cartas entre um pai e uma filha, mandadas e recebidas sem que receptor e emissor, que eram, em simultâneo, receptor e emissor, o soubessem. Tremi e circulei os envelopes, como quem circula energias de efeitos desconhecidos e imprevisíveis.
Meu querido Pai,
Dificilmente poderei explicar o choque que foi ver-te nesta casa. Mais a mais sabendo que não vinhas à procura de prazer, mas de mim. Não querias uma rapariga, não te querias divertir durante uma hora entregando-te aos prazeres do sexo com uma aparente desconhecida. Querias, apenas, ver a tua filha, enfrentar o demónio que é constatar a vida dupla de quem tem o nosso sangue, de alguém por quem estamos dispostos enfrentar todos os inimigos.
Durante uma hora choraste copiosamente no meu quarto, depois de teres rondado uns olhos espantados pela cama, pela cómoda, pelos quadros, pela música, como quem entra num mundo que tem tanto de extraordinário como de mau. Eu encostei-me a um canto, enroscada e transida, como um cão que é vítima de maus tratos que ninguém lhe infligiu, como um desgraçado que se envergonha de um insulto que ninguém lhe dirigiu. Nunca na minha vida me senti tão mal, tão conspurcada, mesmo sabendo que há pessoas que dignificam o trabalho que executam, por mais baixo que pareça. A tua presença no meu quarto foi como um espelho onde revi toda a minha iniquidade – não tanto por aquilo que faço, mas pela desilusão que fui para ti.
Já hoje pedi para falar com a Dra. Clara, para manifestar a minha vontade de sair desta casa. Não conseguirei estar aqui nem mais um dia, não saberei receber nem mais um cliente. Não sei para onde vou, mas estou certa de que encontrarei quem me albergue durante algum tempo. Perceberás que tenho dificuldade em enfrentar-te nos tempos mais próximos. Como te olharei, tu que estavas disposto a tudo pela minha felicidade, depois de te ter visto dobrado num choro confrangedor, num luto prematuro por uma filha viva? A vergonha e o amor afastar-me-ão da casa que foi minha e que espero volte a ser quando tivermos distância suficiente.
Um beijo da tua filha que te ama mais do que tudo,
Joana Maria
***
Minha querida Joana Maria, querida filha,
Abriu-se no meu coração de Pai uma ferida do tamanho do mundo. Todo eu urrei por dentro, como um lobo raivoso, ou como uma mãe a quem arrancam as crias. Tudo dentro de mim se desfez na visão de uma filha linda, com um futuro brilhante pela frente, entregue a uma indignidade. Ver-te naquela casa, naquela vida, com aquelas raparigas, despedaçou-me a alma, e tudo me passou pela cabeça. Enquanto eu chorava de raiva e dor só me apeteceu bater-te, castigar-te por uma coisa que não se faz a um pai que se deu na totalidade a quem era carne da sua carne.
Vi-te enroscada a um canto, esmagada pela vergonha de me encontrares, sem saberes, ao princípio, se aparecia como um cliente ou como um pai. Parecias um cão acossado, um farrapo de mulher, um quadro de miséria. Fui, naquela hora, o lugar geométrico da cólera, do desespero, da irritação, da desonra. Quis escorraçar-te da face da Terra, ver-te morta, longe da minha vista, caída numa valeta a subsistir da caridade alheia. Quando me despedi da D. Amália, e revelei o nosso parentesco, já não era um homem, mas um farrapo; já não era teu pai, mas alguém a quem arrancaram o fio de dignidade que nos permite manter sempre uma coluna direita. Quando me despedi dela, garanto-te, tudo me era indiferente na vida – até a forma de morrer naquele instante.
Pensei muito no assunto, nas tuas opções, no que te empurrou para essa escolha. Mais do que questionar ou criticar, forcei-me a pensar onde tinha eu falhado, qual tinha sido o gesto, a palavra, a frase, o olhar que tinham fechado uma porta entre nós para se abrir a porta da ignomínia. Estes exercícios são terríveis, mas libertadores. É como se algo dentro de nós nos empurrasse teimosamente para a luz, quando o nosso íntimo solicita a escuridão que se alimenta da danação. Vou imaginar que fiz uma espécie de desintoxicação, ao impor, ao meu próprio corpo, o desaparecimento das drogas que corroem o espírito e contaminam o coração.
Eis-me aqui, Joana Maria, o teu pai que te deseja mais do que tudo. O meu coração morre enquanto te imaginar nessa casa. Mas no dia em que entenderes sair, encontrarás um par de braços que se abrem para ti, um coração que rejuvenesce de alegria, uns olhos que chorarão num misto de soluço e riso, um amor que é eterno e tão incondicional quanto permite a minha fraqueza.
Perdoo-te, na esperança de que serei perdoado.
Um beijo muito grande do teu Pai
Cumpriu-se mais um dia, emoldurado por esta certeza do Amor e do Perdão.
MTS
5 comentários:
Que bem que escrevem a Joana Maria e seu pai...
Bjs
concordo. que belas frases escreveram este pai e esta filha. que bonito e oportuno cruzamento de cartas. lindíssimo e redentor. pcp
MTS,
Cumpriu-se mais um dia....
E que dia, lição de perdão, arrependimento, inseguranças?
Gostei muito, a Maria Joana vai mesmo deixar, a profissão que a deixa monetariamente, tão estável?
Será que a moral e bons costumes a vão modificar?
Até para a semana.....
Tirana, PCP, Cris: a gradeço a visita.
Redenção, perdão. Há de tudo isso. Ou serão a moral e os bons costumes? Wait and see, dizem, os ingleses.
MTS, fiquei rendida ao texto de hoje. Simplesmente soberbo. Que bem escritas e sincronizadas estão as duas cartas. Que encaixe perfeito entre amor e perdão, entre amor e entrega. Parabéns, parabéns, parabéns.
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