No quarto de esquina fazia casa, há já algum tempo, um homem a quem tinham posto a alcunha de Musiquitas. Era um personagem despenteado, com o cabelo sempre em desalinho e diferente de dia para dia. Passeava-se, de mãos atrás das costas, pelos corredores dessa casa de gente estranha.
Essa casa de gente estranha era um manicómio. Para muitos dos que lá moravam, era a única casa que alguma vez tinham conhecido. E era, realmente, um universo feito de pessoas excêntricas, e de outras que esticavam tanto esse adjectivo, que para esses só mesmo o estranho se adequava. O Musiquitas era um dos que saltitava de um lado para o outro nessa fronteira. Dependia dos dias.
Certo dia, vindo de um dos passeios diários pelo exterior, trouxe um pedaço comprido de cartolina. Tinha desenhado em cima as teclas de um piano. 84 teclas, pretas e brancas, 7 oitavas, de Dó a Dó. A partir desse dia a casa silenciosa tinha concertos diários. Na sala comum, pelas oito horas, quando os enfermeiros começavam a recolher as tigelas sujas de gelatina ou de mousse de chocolate (conforme o dia), substituindo-as por copinhos com comprimidos de várias cores e feitios, o Musiquitas desdobrava o seu teclado por cima da mesa encostada à janela. Desligava-se a televisão e calava-se todo o burburinho de fundo.
E a essa hora o silêncio instalava-se, grave e solene, na sala. Os enfermeiros, habituados a demonstrações de loucura de todos os tipos, não ligavam. Mas os pacientes estavam absortos, quase que hipnotizados pela música que saía das teclas de cartolina.
O concertista anunciava o que ia tocar antes de cada música, esperava que as palmas, os uivos e os assobios se calassem, e agradecia sempre de pé, curvando-se várias vezes perante o peculiar público.
Isto repetia-se quase todos os dias. O Musiquitas tocava com um ar tão compenetrado e tão envolvido, que as notas pareciam fugir dos dedos que passeavam na cartolina. E o público parecia também realmente ouvi-las, pois alguns, de olhos fechados, abanavam a cabeça a ritmo. Havia mesmo quem, nas músicas de ritmos mais solarengos, assobiasse a melodia.
Os enfermeiros, intrigados por este espectáculo que parecia ter cada vez mais fãs, decidiram preparar uma surpresa ao Musiquitas. Trouxeram-lhe um teclado verdadeiro. Conseguiram-no convencer a trocar a habitual cartolina por esse. Mas ele não gostava nada destas teclas novas. Eram frias e moles. Não tinham sentimento quando as empurrava para baixo. Mas mesmo contrafeito deu o concerto habitual.
O mesmo silêncio dos outros dias se instalou, e os enfermeiros, mal ecoou a primeira nota no ar, abriram todos os olhos de espanto. Saía do piano uma música tão leve como a noite lá fora. O pianista, concentrado no seu ofício, fechava os olhos. E desse piano as harmonias ficavam, por instantes, suspensas no ar, como o fumo dos cigarros, até se dissolverem.
Perplexos, os enfermeiros foram dar os parabéns ao Musiquitas no fim do seu concerto. Tinham gostado muito, e insistiram para que ele tocasse habitualmente. Ele olhava-os, naquele ar desalinhado e vago. Não percebia o porquê desta conversa só agora, quando já há tanto tempo que ali tocava. O teclado era diferente, mas a música era a mesma.
SdB (III)
2 comentários:
Que coisa deliciosa. Um humor cheio de sensibilidade. Gostei imenso. pcp
Excelente história, muito bem contada!
fq
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