O despojamento radical e A Terceira Margem do Rio
Um certo dia, um escultor “agarrou” num bloco de mármore puro do Carrara. Durante dois anos trabalhou afincadamente naquela massa de pedra, envolvendo-se em grande profundidade
no tema que estava representar, até então pouco conhecido da maior parte das
pessoas. Quando acabou, e teria, ao que se sabe, 25 anos, tinha esculpido uma das mais bonitas, se não
a mais bonita, escultura de todos os tempos: a Pietà.
Chamava-se Miguel Ângelo Buonarroti e terá sido dele a frase:
Em cada
bloco de mármore vejo uma estátua; vejo-a tão claramente como se estivesse na
minha frente, moldada e perfeita na pose e no efeito. Tenho apenas de desbastar
as paredes brutas que aprisionam a adorável aparição para revelá-la a outros
olhos como os meus já a vêem.
O pensamento talvez se pudesse resumir numa frase mais simples, muito
próximo de uma que ele terá proferido: uma escultura não é mais do que um bloco de pedra ao qual
se retirou tudo o que era acessório.
Durante dois
anos foi isso que Miguel Ângelo fez: retirou do bloco de mármore tudo o que
estava a mais, tudo o que era acessório, tudo o que, do seu ponto de vista não
acrescentava valor à obra. Nesta
escultura, de 1,74m por 1,95 cm, não há nada a mais, nada a menos. As
proporções estão perfeitas, artisticamente perfeitas; até o corpo de Jesus Cristo
está propositadamente mais pequeno do que o de Nossa Senhora, para não o
esmagar. Miguel Ângelo não acrescentou nada ao bloco de mármore; não lhe colou
peças, não lhe juntou materiais. O que o artista fez foi despojar o bloco de mármore
do dispensável.
Os dicionários lembram que despojar significa privar da posse de; desapossar, tirar; despir, roubar, deixar, largar;
renunciar, despir-se.
Ainda que aplicado à literatura, Milan Kundera usou, no seu livro A
Arte do Romance, uma expressão particularmente feliz: clareza arquitectónica
– um castelo não pode ser tão grandioso que não possamos abarcá-lo com a vista, um quatuor não pode durar nove horas, um livro não pode ser tão grande que nos esqueçamos do início.
Atentemos na Pietà: a estátua poderia ter o dobro da altura? Claro que
poderia, o desafio não seria hercúleo para Miguel Ângelo. Mas conseguiríamos
ver o encanto da escultura, a sua força, a sua beleza? Conseguiríamos ver o
drama pungente de uma Mãe que carrega o Filho morto nos braços? Provavelmente
não. Com mais de três metros de altura a estátua seria mais imponente, mas
perderia a dimensão de clareza arquitectónica.
Na mesma linha, Leos Janacek, compositor checoslovaco citado por
Kundera, afirma: só a nota que diz algo de essencial tem
o direito de existir. Regressamos, assim, à ideia referida acima para a Pietà: falamos
do despojamento de tudo o que é acessório. Podíamos ainda falar no despojamento
representado na arquitectura minimalista, de que um grande expoente foi Mies
Van der Rohe: less is more.
O despojamento – que também significa deixar, largar, renunciar –
é uma prática antiga, talvez iniciada pelo monges. Cito José Mattoso, um
professor desta casa: de facto, os monges não abandonaram a vida normal, não
mergulharam no deserto, não procuraram o despojamento total de si mesmos senão
para contemplarem a Deus e se unirem com Ele.
O despojamento pessoal não é mais do que a procura de uma vida mais
simples, afastada da profusão de sensações, informações, notícias, ruído,
desejos consumistas, que nos afastam do essencial, do que é importante, do que
é belo.
Falemos
agora do conto A
Terceira Margem do Rio, de João Guimarães Rosa.
A terceira margem do
rio conta a
história de um homem que se evade de toda e qualquer convivência com a família
e com a sociedade, preferindo a completa solidão do rio, dentro de uma canoa. Por
contradizer os padrões normais de comportamento, é considerado um
desequilibrado.
O narrador-personagem é
seu filho, e relata todas as tentativas infrutíferas da família, vizinhos e
conhecidos, de estabelecer algum tipo de comunicação com o solitário remador,
que recusa qualquer contacto.
A família, inicialmente
aturdida com a atitude do pai, vai-se acostumando ao seu abandono. Com o tempo,
mudam-se da fazenda onde residiam. Só o narrador permanece, mas sua vida
torna-se sem sentido, a não ser pelo desejo obstinado de entender os motivos da
ausência do pai. Um dia, dirige-se ao rio, grita pelo pai e propõe tomar o seu
lugar na canoa. A aperceber-se da concordância dele, o filho foge apavorado,
desistindo da ideia.
O narrador-personagem dá-nos
a conhecer um ser humano cujos ideais de vida divergem dos padrões aceites como
normais. O único a persistir na busca de entendimento da opção do pai é o
narrador, que não o deixa, e chega a desejar substituí-lo. A escolha do
isolamento no rio instiga permanentemente o filho.
Qual o significado deste
conto, apesar das várias interpretações? Considerando que o rio só tem duas
margens, a busca de uma terceira margem poderá ter um significado metafísico. A
viagem, no plano meramente material, seria sem destino e sem sentido. O homem
foge de uma vida apagada, medíocre, em busca de respostas que não encontrou nas
limitações e na superficialidade do senso comum. A terceira margem representa o
subjectivo – o que não se vê, não se toca, não se conhece. Eternidade? Utopia?
Assim, ao partir em
busca da terceira margem do rio, o homem vai à procura do desconhecido dentro
de si, do sentido da vida. O homem toma a decisão de existir. O isolamento a
que se entrega – uma forma de despojamento – é a única forma de ele entender os
mistérios da alma, o que não é compreensível na vida.
O narrador-personagem, filho
do homem da canoa, ao ser confrontado com a possibilidade de se despojar de
tudo e ir procurar o essencial, desiste e vive amargurado.
O que é o despojamento
radical na literatura? Será assim tão diferente dos vários despojamentos de que aqui falei? Do acessório que Miguel Ângelo
retira do seu bloco de mármore, dos monges que abandonam a vida dita normal e
mergulham no deserto, do less is more
da arquitectura minimalista, do direito a existir das notas musicais apenas que dizem
coisas essenciais, ou da evasão do homem do Sertão que vai viver para uma
canoa no rio, à procura do que não encontra na vida real. Poderia ainda falar
na metáfora mecânica de Gonçalo M Tavares: uma
máquina só deve ter as peças que cumprem alguma missão. Na literatura aplica-se
o mesmo princípio.
Para que serve o
despojamento radical na literatura? Para que se consiga a clareza arquitectónica. Para que todas as palavras sejam
imprescindíveis e cumpram o objectivo de Hermann Broch, ainda citado por
Kundera: descobrir aquilo que só um
romance pode descobrir é a única razão de ser de um romance. O romance que não
descobre uma porção até então desconhecida da existência é imoral. O
conhecimento é a única moral do romance.
* dissertação apresentada na disciplina Tópicos de Teoria da Literatura, que servirá de base ao trabalho final
JdB
1 comentário:
Muito interessante. Gostei muito, JdB. pcp
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