24 maio 2013

O despojamento radical na Literatura*

O essencial é saber ver (Alberto Caeiro, in O Guardador de Rebanhos)

O despojamento radical e A Terceira Margem do Rio  

Um certo dia, um escultor “agarrou” num bloco de mármore puro do Carrara. Durante dois anos trabalhou afincadamente naquela massa de pedra, envolvendo-se em grande profundidade no tema que estava representar, até então pouco conhecido da maior parte das pessoas. Quando acabou, e teria, ao que se sabe, 25 anos, tinha esculpido uma das mais bonitas, se não a mais bonita, escultura de todos os tempos: a Pietà.

Chamava-se Miguel Ângelo Buonarroti e terá sido dele a frase:

Em cada bloco de mármore vejo uma estátua; vejo-a tão claramente como se estivesse na minha frente, moldada e perfeita na pose e no efeito. Tenho apenas de desbastar as paredes brutas que aprisionam a adorável aparição para revelá-la a outros olhos como os meus já a vêem.

O pensamento talvez se pudesse resumir numa frase mais simples, muito próximo de uma que ele terá proferido: uma escultura não é mais do que um bloco de pedra ao qual se retirou tudo o que era acessório.

Durante dois anos foi isso que Miguel Ângelo fez: retirou do bloco de mármore tudo o que estava a mais, tudo o que era acessório, tudo o que, do seu ponto de vista não acrescentava valor à obra. Nesta escultura, de 1,74m por 1,95 cm, não há nada a mais, nada a menos. As proporções estão perfeitas, artisticamente perfeitas; até o corpo de Jesus Cristo está propositadamente mais pequeno do que o de Nossa Senhora, para não o esmagar. Miguel Ângelo não acrescentou nada ao bloco de mármore; não lhe colou peças, não lhe juntou materiais. O que o artista fez foi despojar o bloco de mármore  do dispensável.

Os dicionários lembram que despojar significa privar da posse de; desapossar, tirar; despir, roubar, deixar, largar; renunciar, despir-se.

Ainda que aplicado à literatura, Milan Kundera usou, no seu livro A Arte do Romance, uma expressão particularmente feliz: clareza arquitectónica – um castelo não pode ser tão grandioso que não possamos abarcá-lo com a vista, um quatuor não pode durar nove horas, um livro não pode ser tão grande que nos esqueçamos do início.

Atentemos na Pietà: a estátua poderia ter o dobro da altura? Claro que poderia, o desafio não seria hercúleo para Miguel Ângelo. Mas conseguiríamos ver o encanto da escultura, a sua força, a sua beleza? Conseguiríamos ver o drama pungente de uma Mãe que carrega o Filho morto nos braços? Provavelmente não. Com mais de três metros de altura a estátua seria mais imponente, mas perderia a dimensão de clareza arquitectónica

Na mesma linha, Leos Janacek, compositor checoslovaco citado por Kundera, afirma: só a nota que diz algo de essencial tem o direito de existir. Regressamos, assim, à ideia referida acima para a Pietà: falamos do despojamento de tudo o que é acessório. Podíamos ainda falar no despojamento representado na arquitectura minimalista, de que um grande expoente foi Mies Van der Rohe: less is more

O despojamento – que também significa deixar, largar, renunciar – é uma prática antiga, talvez iniciada pelo monges. Cito José Mattoso, um professor desta casa: de facto, os monges não abandonaram a vida normal, não mergulharam no deserto, não procuraram o despojamento total de si mesmos senão para contemplarem a Deus e se unirem com Ele.

O despojamento pessoal não é mais do que a procura de uma vida mais simples, afastada da profusão de sensações, informações, notícias, ruído, desejos consumistas, que nos afastam do essencial, do que é importante, do que é belo.

A terceira margem do rio conta a história de um homem que se evade de toda e qualquer convivência com a família e com a sociedade, preferindo a completa solidão do rio, dentro de uma canoa. Por contradizer os padrões normais de comportamento, é considerado um desequilibrado. 

O narrador-personagem é seu filho, e relata todas as tentativas infrutíferas da família, vizinhos e conhecidos, de estabelecer algum tipo de comunicação com o solitário remador, que recusa qualquer contacto.

A família, inicialmente aturdida com a atitude do pai, vai-se acostumando ao seu abandono. Com o tempo, mudam-se da fazenda onde residiam. Só o narrador permanece, mas sua vida torna-se sem sentido, a não ser pelo desejo obstinado de entender os motivos da ausência do pai. Um dia, dirige-se ao rio, grita pelo pai e propõe tomar o seu lugar na canoa. A aperceber-se da concordância dele, o filho foge apavorado, desistindo da ideia.

O narrador-personagem dá-nos a conhecer um ser humano cujos ideais de vida divergem dos padrões aceites como normais. O único a persistir na busca de entendimento da opção do pai é o narrador, que não o deixa, e chega a desejar substituí-lo. A escolha do isolamento no rio instiga permanentemente o filho.

Qual o significado deste conto, apesar das várias interpretações? Considerando que o rio só tem duas margens, a busca de uma terceira margem poderá ter um significado metafísico. A viagem, no plano meramente material, seria sem destino e sem sentido. O homem foge de uma vida apagada, medíocre, em busca de respostas que não encontrou nas limitações e na superficialidade do senso comum. A terceira margem representa o subjectivo – o que não se vê, não se toca, não se conhece. Eternidade? Utopia?

Assim, ao partir em busca da terceira margem do rio, o homem vai à procura do desconhecido dentro de si, do sentido da vida. O homem toma a decisão de existir. O isolamento a que se entrega – uma forma de despojamento – é a única forma de ele entender os mistérios da alma, o que não é compreensível na vida.

O narrador-personagem, filho do homem da canoa, ao ser confrontado com a possibilidade de se despojar de tudo e ir procurar o essencial, desiste e vive amargurado.

O que é o despojamento radical na literatura? Será assim tão diferente dos vários despojamentos de que aqui falei? Do acessório que Miguel Ângelo retira do seu bloco de mármore, dos monges que abandonam a vida dita normal e mergulham no deserto, do less is more da arquitectura minimalista, do direito a existir das notas musicais apenas que dizem coisas essenciais, ou da evasão do homem do Sertão que vai viver para uma canoa no rio, à procura do que não encontra na vida real. Poderia ainda falar na metáfora mecânica de Gonçalo M Tavares: uma máquina só deve ter as peças que cumprem alguma missão. Na literatura aplica-se o mesmo princípio.

Para que serve o despojamento radical na literatura? Para que se consiga a clareza arquitectónica. Para que todas as palavras sejam imprescindíveis e cumpram o objectivo de Hermann Broch, ainda citado por Kundera: descobrir aquilo que só um romance pode descobrir é a única razão de ser de um romance. O romance que não descobre uma porção até então desconhecida da existência é imoral. O conhecimento é a única moral do romance.  

* dissertação apresentada na disciplina Tópicos de Teoria da Literatura, que servirá de base ao trabalho final

JdB

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito interessante. Gostei muito, JdB. pcp

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