23 maio 2013

Cartas dos dias que correram...

Meu querido Amigo,

Começo por não saber quem é o emissor e o destinatário desta carta. Sou eu para ti, ou eu para mim próprio? Talvez haja aqui uma dimensão de irrelevância, pois o importante é que se fale, se interiorize, se questione. Atente-se, por isso, no teor da mensagem, que tudo o resto é acessório.

Há larguíssimos meses jantámos em casa de amigos comuns, daqueles que partilham connosco visões, princípios e opções de vida intrinsecamente semelhantes. Havia, à volta daquela mesa, um menor múltiplo comum que nos unia a todos: família, ética, valores morais, a honestidade que não se negoceia. 

A dada altura falámos, no domínio das hipóteses académicas - e talvez ligado a um filme que surgiu na altura - sobre o que faríamos se a vida nos desse um prazo de validade de seis meses deixando-nos, no entanto, a saúde o o dinheiro para gozarmos o que restaria desta existência terrena. Estarás recordado que, de início, muitos de nós mencionavam o gozo das viagens que não tinham sido feitas, a leitura dos livros que tinham escapado, o aforro de divertimentos para futuro nenhum. Depois, pouco a pouco, talvez a nossa condição de crentes tivesse falado mais alto e o gozo, tão desmedido quanto possível, tivesse dado lugar a uma preocupação mais espiritual, de preparação para a eternidade em que todos, cada um à sua maneira, acredita. Talvez resumisse a minha posição, face à eventualidade de viver apenas seis meses, numa frase que me disse pessoa que estimo, ainda que os sentidos possam ser vários e as interpretações múltiplas: tentava deixar a casa arrumada.

Gosto da frase porque encerra, em meia dúzia de palavras, uma posição muito abrangente. Na realidade, o que é arrumar a casa? Deixar garantido o futuro dos filhos? Precaver-se da existência de dívidas? Gizar investimentos de médio/longo prazo? Beneficiar os que cá ficam com um recuerdo da nossa passagem pelas suas vidas? Arrumar a casa é, seguramente, tudo isso. Mas, atrevo-me a dizê-lo, é regularizar, também, a nossa relação com os que nos rodeiam, não deixar um ficheiro repleto de créditos mal parados na relações sociais e familiares, sentir que partimos ao cair do último dia do sexto mês e que, à volta do corpo inerte que é o nosso, estão todos os que passaram pela nossa existência: os que nos amaram e os que nos odiaram, aqueles para quem fomos um vestígio de indiferença ou uma lufada de amizade militante, aqueles que se cruzaram connosco e que remetemos para um olvido tingido de desprezo. 

Talvez a nossa verdadeira luta, aquela que tem os olhos postos em algo maior, seja, realmente, a arrumação da nossa casa: ir fechando gavetas de incompatibilidades, de caras que se voltam, de ruas que se atravessam num repente de disfarce, de ódios que nos corroem as entranhas, de raivas que sempre nos azedam, de faltas de paciência que diminuem o próximo, de mágoas que sentimos por quem pensamos que nos prejudicou, não esquecendo nunca que talvez tenhamos estado na génese de tudo.

Vem esta longa e maçadora carta a propósito, também, do livro de uma enfermeira australiana que passou vários anos à cabeceira de doentes terminais. Para que o livro não se tornasse num amontoado de depoimentos, organizou-os em pequenos grupos, aos quais chamou: Os cinco maiores arrependimentos à beira da morte. São eles:

- eu gostaria de ter tido a coragem de viver a vida que eu quisesse e não a vida que os outros esperavam que eu vivesse;
- eu gostaria de não ter trabalhado tanto;
- eu queria ter tido a coragem de expressar os meus sentimentos;
- eu gostaria de ter tido mais tempo para os meus amigos
- eu gostaria de ter-me permitido ser mais feliz. 

Percebe-se que a autora, propositadamente ou não, não entrou no campo espiritual, pelo que estas ideias poderão estar incompletas. Mas, não obstante, dão-nos algumas pistas. 

E nós, se estivessemos amanhã no leito onde se apagarão todas as máquinas, de que nos arrependeríamos?

Um grande abraço,

JdB  

1 comentário:

Anónimo disse...

Adoro posts provocatórios, por isso cá vai, também, uma pequenina provocação:

«The mind that has put its house in order, has understood the nature of knowledge. Such a mind is completely silent. And that silence has no cause. You see, "silence" can be illusory; it can be put together by a thought that is determined to be silent. You have the silence between the two whistles of a train, the silence between two notes, between two noises, between two sounds, between two thoughts - but that kind of silence is still within the realm of cognition.

But when the mind is completely silent, it is not even aware that it is silent. If it were, it would merely be playing tricks.

The mind that has put its house in order is silent.

That silence has no cause and, therefore, has no end.

Only that which has a cause can end.

That silence - which has no ending - is absolutely necessary, because it is only in that silence that there is no movement of thought.

It is only in that silence that that which is sacred, that which is nameless, and that which is not measurable by thought, is.

And that which is, is the most sacred»

Arrependimento nº. 6: gostava não ter deixado as arrumações para os últimos 6 meses nesta terra.

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