20 maio 2013

Vai um gin do Peter’s?


Num gin anterior (22 de Abril), a exposição «360º Ciência Descoberta»(1) teve uma primeira abordagem, valendo a pena retomar o tema, numa outra perspectiva: a da revolução de mentalidades despoletada pelos Descobrimentos, que se repercutiu na ciência. Esta mostra resulta numa reposição justa e extraordinária da história portuguesa, ao revelar a achega dada pelos Descobrimentos marítimos dos séculos XV e XVI para a evolução da ciência moderna. Este reconhecimento, hoje aceite pela historiografia actual, data apenas de há uns 12 anos, tendo começado com historiadores espanhóis conceituados e logo contagiado os especialistas norte-americanos.
De todos os feitos associados à maior gesta da história pátria, o contributo para o saber costuma ser ignorado, embora naquele tempo tenha sido diferente. Só que não deixou rasto. Exemplo disso é o comentário de Kepler ao ímpeto revolucionário dado à ciência por Galileu, considerando-o o «Colombo» (sic) do século XVII. 

Um parêntesis curioso: nesta exposição encontra-se matéria de sobra para romances históricos empolgantes, envolvendo as intrigas do poder; ou os inúmeros segredos de estado relacionados com mapas, técnicas náuticas, instrumentos marítimos inovadores, etc.; ou a guerra de espionagem à volta dos segredos cobiçadíssimos pelas potências estrangeiras; ou as peripécias ligadas à conquista de um planeta desconhecido, que passou a ser mapeado a 360º; ou o entusiasmo com as novas propriedades da fauna e flora exóticas, assim como o modus vivendi tão original de civilizações longínquas ou ainda o fascínio com as paisagens inimagináveis para um europeu; ou toda a aventura humana impulsionada pelos fluxos migratórios no seio de um império nascente, onde o sol não se punha, do Extremo Oriente à América do Sul.

Sobre as façanhas e roubos dos espiões, a exposição (e catálogo) alude ao célebre desvio do Planisfério de Cantino (1502), levado para Itália por um agente do Duque de Ferrara – Alberto Cantino – que o adquiriu ao arrepio das ordens régias, especialmente restritivas neste campo. Além de decorativo, era muitíssimo informativo, com o continente americano e a Ásia devidamente cartografados, o meridiano de Tordesilhas, a indicação de portos e pontos de apoio para a navegação.
   

Dimensões confortáveis para a consulta, com óptima legibilidade: 22ocm X 105cm.

Será exagero afirmar que um novo mundo originou uma nova ciência, como sugere a exposição?

Na exposição, vê-se o salto qualitativo dos mapas, operado em poucas décadas, passando-se de uma focagem centrada na bacia mediterrânica para a cartografia total do planeta. Finalmente, a terra toda, como se afirma na Gulbenkian. 
Se as mudanças ao nível da quantidade inusitada de novos dados foram, só por si, impressionantes (geografia, ciências naturais, astronomia, cosmografia, matemática, medicina, economia, etc.), não foi menos relevante o avanço nas mentalidades, como talvez nunca antes a humanidade terá vivido, em tão curto espaço de tempo. Nunca como agora se provava o alcance vital do conhecimento, conforme Platão precocemente descortinara (aludindo ao auto-conhecimento mas extensível a todo o saber): «A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento». O alargamento da Terra conhecida e agora integralmente traçada nos planisférios reflecte-se no alargamento das ideias. O espaço globaliza-se, o tempo ganha uma escala inédita, os povos das proveniências mais remotas começam a aproximar-se. O mundo lança-se num processo de globalização sem precedentes e sem retorno.
Do saber certificado pela autoridade das figuras incontestadas do antigamente, com escritos que sustentavam toda a base do conhecimento, passa-se ao saber comprovado através da experiência e pelo olhar presencial, que põe em causa as fontes antigas. Acresce ainda que os novos observadores não possuem estatuto especial, valendo apenas por serem as testemunhas das novidades achadas. Novidades essas, que emprestavam poder a homens comuns, agora capazes de desafiar referências até ali consagradas. Por isso, acabaram por ser gentes anónimas a denunciar o limite gritante do saber milenar, afinal tão parco. No fundo, o próprio poder começava a estender-se a mais actores, descentralizando-se sub-repticiamente, num contínuo firme e galopante.   

O estudo e o registo enciclopédico, carburados nos gabinetes de outrora, dão lugar ao contacto directo com a realidade – um novo procedimento que marcará a postura do cientista moderno. Aquela circulação intensa de conhecimentos, além de criar uma perspectiva global do saber, gerou um novo olhar sobre a realidade, emergindo a relevância da curiosidade aplicada, baseada na observação in loco. Uma curiosidade que conseguiu contagiar toda a sociedade, ávida de também ver a avalanche de seres bizarros que os viajantes dos galeões descreviam. Os canais do saber começavam a atingir capilarmente todo o tecido social, deixando de se confinar a um número ínfimo de privilegiados.

Da pequena elite de sábios que perdurara até ao final da Idade Média, o saber passa a disseminar-se por uma classe imensa de artesãos, marinheiros quase analfabetos, favorecendo ainda o aparecimento de grupos de técnicos, intervenientes na ocupação de lugares recônditos e no movimento comercial de escala planetária. Assiste-se a uma democratização gradual (e embrionária) do conhecimento, também apoiada pela eclosão de uma nova literatura editada em vernáculo, mais acessível à maioria.  

É bem expressivo, como mostra «360º», a mudança dos objectos ora valorizados: do pequeno escritório atulhado de livros e onde reinava o silêncio, passa-se aos gabinetes de curiosidades, repletos de espécimen de outras latitudes, instrumentos náuticos, portulanos e globos, um surto colorido de colecções, artefactos de lugares remotos, amigos e admiradores, algazarra e animação, a par de um ou outro livro:

Um universo livresco, austero e solitário.
 TELA: «A Philosopher in his Study», de Gerrit Van Honthorst b. 1590. 


Nos antípodas: um universo faustoso onde se ostenta a máxima diversidade. 
TELA: «The Archdukes Albert and Isabella (of Habsburg) Visiting a Collector's Cabinet»,
de Jan Brueghel the Elder(1568–1625), no Walters Museum of Art – Baltimore.

De uma minoria com acesso aos raros (e caríssimos) instrumentos técnicos existentes, passa-se ao domínio de instrumentos sofisticados (mas feitos em materiais comuns) pelo pessoal de bordo das naus portuguesas, que ganharam destreza a manusear o quadrante, a balestilha, o astrolábio, o anel náutico (de Pedro Nunes), completando a determinação das latitudes, em pleno oceano, com cálculos matemáticos até ali circunscritos aos estudiosos. A simples bússola, adequada ao Mediterrâneo, torna-se obsoleta. Regista-se, então, um crescimento exponencial do público destinatário dos saberes, conferindo estatuto a uma classe de profissionais intermédios, capazes de estabelecer a ponte entre os artesãos e os académicos, que até ali coabitavam em mundos paralelos e apartados um do outro.


Um instrumento de uso difícil, em mar alto, como puderam
comprovar os convidados da Gulbenkian na expedição náutica
a bordo do veleiro «Polar», realizada no âmbito desta exposição. 

Do conceito algo abstracto, mas aceite em todo o Ocidente, de que o planeta era esférico (só na China se considerava que seria quadrado), passa-se à evidência concreta e palpável desse facto, atestado pelas multidões envolvidas nos Descobrimentos, que até ali nunca tinham sido audíveis no segmento selectivo dos sábios. Afinal, coube aos marinheiros dos reinos peninsulares o mérito de ter dado substância a um dado até ali excessivamente conceptualizado.

Após as sangrentas ofensivas no Norte de África e à dureza dos anos de guerra civil e profundas convulsões sociais em Portugal (fim do século XIV, culminando com o início da dinastia da Casa de Avis), passa-se a um período de optimismo e festividade, pouco comum na história nacional. O matemático aclamado além-fronteiras – Pedro Nunes – é disso porta-voz, confiando no ritmo deslumbrante e aparentemente imparável dos novos conhecimentos detidos pelos Portugueses: «As navegações deste reino, de cem anos a esta parte, são as maiores, as mais maravilhosas, de mais altas e mais discretas conjunturas, que as de nenhuma outra gente do mundo. Os portugueses ousaram cometer o grande mar aceano (...). Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e, o que mais é, novo céu e novas estrelas.» (1537)


Matemático português (1502-1578) célebre na Europa do seu tempo,
que desenvolveu as técnicas de navegação e inventou ferramentas de medida
como o anel náutico, o instrumento de sombras e o nónio. 

No mural ao fundo da exposição, deparamo-nos com um vasto elenco de nomes praticamente incógnitos, a confirmar o papel crucial de tantos valorosos omissos (a maioria) nos manuais de história, mas a quem os grandes cientistas dos séculos seguintes ficaram altamente devedores, como Copérnico, Galileu, Kepler, mais tarde Newton e muitos outros.  
Entre as perguntas que nos assaltam e nos fazem procurar as causas do desenvolvimento lusitano tão pujante quanto precário, «360º» (mais ainda, o catálogo) ajuda-nos a reflectir sobre a relação directa entre o domínio técnico-científico e os recursos financeiros. Indissociáveis, revelam-nos a História. Como assinala o catálogo: «E voltaram (os historiadores clássicos) à antiga e sempre relevante questão da relação entre actividade económica e produção científica, notando, em particular, como as linhas de comércio haviam funcionado historicamente como canais de comunicação científica.» (p.95)
Cabe ainda uma menção final a alguma sedimentação bem eficaz do saber feita em Portugal, quer através dos «Armazéns da Índia» que, ao serviço da coroa, inventariavam e geriam os dados recolhidos a bordo, quer do ensino jesuíta, em especial da matemática, com a célebre «Aula da Esfera», no Colégio de Sto. Antão (actual Hospital de S.José). Ali se preparavam os mais jovens para a missionação junto da corte do Império do Meio, onde a presença da Companhia foi preponderante até à deposição do último imperador chinês, em 1912(2). Isso permitiu que, até à extinção da Ordem no nosso país, pelo Marquês de Pombal, matemáticos de renome internacional leccionassem em Lisboa, ao serviço dos jesuítas.
Convenhamos que os Descobrimentos foram uma iniciativa algo atípica entre nós, pensada com boa antecedência e implementada com enorme rigor, organização, além de sentido prático. Segundo o testemunho directo de Pedro Nunes: «Ora manifesto é que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar, mas partiam os nossos mareantes mui ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e geometria. Levavam cartas muito particularmente rumadas e não já as de que os Antigos usavam (...).»
Além da Feira do Livro (de 23 a 10 de Junho), até 2 de Junho pode gozar-se esta exposição bem interessante, que se clarifica melhor com o catálogo. «360º» tem a vantagem adicional de nos transmitir alguma da esperança que perpassa no Portugal do século XVI, ali representado. Garcia de Orta condensa-o espantosamente, com a autoridade de ter sido dos principais descobridores, precisamente no campo científico: «O QUE HOJE NÃO SABEMOS, AMANHà SABEREMOS» (1563). Só para interiorizarmos esta convicção bem positiva (naturalmente, a partir de motivos inspiradores), já vale a pena rumar até à Fundação na av. de  Berna…  Programas não faltam, em Lisboa.  

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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 (1) http://www.gulbenkian.pt/object160article_id4101langId1.html Comissário: Henrique Leitão. De 2 mar a 2 jun 2013  |  10:00 - 18:00  |  Encerra às segundas.                                          
A exposição reparte-se por seis grupos temáticos:
I – O SABER PELA PALABRA
II – O ESPANTO DA NOVIDADE
III – DO MEDITERRÂNEO AO MUNDO TODO
IV – CADA ESTRELA É UM NÚMERO
V – PLANEAR: A GESTÃO DO SABER
VI – DO MUNDO NOVO UMA CIÊNCIA NOVA.
(2) Propriamente, a saída definitiva da Companhia de Jesus dá-se mais tarde, a 8 de Setembro de 1955, quando o governo comunista prende o Bispo de Xangai e toda a comunidade católica que sobrevivera às várias reviravoltas políticas. Mas a partir do afastamento do último imperador, a presença daqueles missionários no país torna-se problemática e arriscada.     



As maravilhas do mundo natural exibidas na Gulbenkian voltam a encantar o
Velho Continente. A vitrina linda, onde estão expostas, ajuda a valorizar as peças.

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