Vale
a pena começar por referir o que Strawson diz de MacIntyre:
“Alasdair
MacIntyre é talvez a figura fundadora no campo da moderna Narratividade... ‘A
unidade de uma vida individual’, diz ele, ‘é a unidade de uma narrativa
incorporada numa vida única. Perguntar “o que é o bem para mim?” é perguntar
quão melhor eu poderia ter vivido essa unidade e tê-la levado até ao fim... ‘A
unidade de uma vida humana’, continua ele, ‘é a unidade de uma demanda
narrativa... [e] o único critério de sucesso ou de falhanço numa vida humana
como um todo é o critério de sucesso ou de falhanço numa demanda narrada ou narrável...
Uma demanda de quê? ... uma demanda do bem ... a vida boa para o homem é uma
vida despendida na procura de uma vida boa para o homem”.
***
Retomemos
então o enunciado do problema – a observação de um rebanho de gado a pastar (na
apreciação de Nietzsche) e a sua relação com a “tese da narratividade ética”.
Apesar do simplismo da frase, como conseguimos relacionar uma ovelha que rumina
num campo com a demanda de um homem por uma vida boa?
Segundo
o filósofo alemão, a ovelha esquece-se (ou não tem capacidade de memorizar?),
não leva nada consigo quando regressa ao aprisco. Vive sem passado, totalmente
contido no presente. Vive a-historicamente.
Além disso, não tem qualquer capacidade de dissimular ou de esconder o que quer
que seja – é honesta. Aqui, nesta incapacidade de lembrança e de fingimento,
reside aquilo que no animal provoca inveja ao homem, aquilo que parece ser a
felicidade cobiçável de uma vida vivida momento a momento.
Como
se relaciona esta ideia com a “tese da narratividade ética”? Relaciona-se,
porventura, pelo contraste. A ideia subjacente à existência de uma ovelha está
mais próxima do conceito de vida Episódica defendida por Strawson. Os
Episódicos não se consideram como algo que existiu num [outro] passado e que
existirá num [outro] futuro. De uma
forma radical, poderíamos dizer que a ovelha é o Episódico irracional.
Ora,
MacIntyre defende exactamente o oposto. “E a unidade de uma virtude na vida de
alguém só é inteligível como característica de uma vida unitária, uma vida que
pode ser concebida e avaliada como um todo”. MacIntyre é o Diacrónico ético.
Não o diacrónico que sabe que existiu no passado e que existirá no futuro, mas
o diacrónico que entende que “a unidade de uma vida humana é a unidade de
uma demanda narrativa”. Demanda de quê? Uma demanda do bem.
Para
MacIntyre, uma vida mal vivida, isto é, sem narrativa, como episódios
desligados, não vale a pena ser vivida. Não comparamos esta ideia com a de um
rebanho, porque seria perda de tempo, mas comparamo-la com uma espécie de ideal
de felicidade de que a ovelha é detentora, porque é desprovida de lembranças,
de aborrecimento e de dor.
MacIntyre,
pelo contrário, não fala de felicidade no capítulo 15 do seu livro After Virtue. Em momento algum é
referido o que faz um homem feliz. Mas, mesmo correndo o risco do despropósito,
poderia fazer-se aqui um jogo de palavras com uma expressão usada várias vezes
por MacIntyre: good life, que poderia
ser traduzida como vida boa, mas
também como boa vida. As mesmas duas
palavras, invertidas, transmitem conceitos completamente diferentes.
O
que goza a ovelha, desprovida da tal lembrança, aborrecimento e dor? Em havendo
pasto e um aprisco decente, goza uma boa
vida, na sua existência feita de momentos presentes - “como um número sem
resto” - sem dissimulações e detentora de uma aparente e louvável honestidade.
Ora, a narratividade ética que MacIntyre defende é a que garante ao homem uma vida boa, porque despendida na procura
do bem.
A
ovelha tem uma existência passada. Mas o homem nasce com passado. Além disso, o
que distingue ambos, no sentido deste ensaio, é a capacidade de o homem perceber
que, antes de perguntar: “o que devo fazer?”, se deve questionar: “de que
história faço parte?” E esta história tem de ser composta, não por episódios
soltos, mas por uma coerência unitária que lhe confira um sentido. A ovelha não
a tem. Assim como não tem quem quiser viver como a ovelha – sem memória, sem
aborrecimento, sem dissimulação ou fingimento. A ovelha não vive feliz, porque
a ovelha, em bom rigor não vive. A ovelha existe.
Quanto
à demanda, diz MacIntyre: “é no decurso da demanda, e pelo facto, apenas, de
encontrarmos e lidarmos com os vários males, perigos, tentações e distracções
que proporcionam a qualquer demanda os seus episódios e incidentes, que o
objectivo da demanda é finalmente entendido. “
A
demanda encerra em si duas vertentes: um telos,
isto é, uma finalidade, um propósito, e aquilo que refere MacIntyre: “... uma
educação, quer quanto à natureza do que é procurado, quer em termos de
autoconhecimento”.
Uma
ovelha não procura nada, para além de um pasto que lhe satisfaça a necessidade
básica. Não existe nela a dimensão de demanda, no sentido medieval do termo,
com todas as suas vantagens e desafios. Invejarmos a ovelha na sua a-historicidade é invejarmos uma espécie
de ser humano episódico levado ao extremo, concebendo um dia vivido de cada
vez, sem noção de antes nem depois. Por outro lado, um homem semelhante ao
animal de Nietzsche não deve ser invejado por uma pretensa honestidade, porque nele não há valores morais ou éticos,
apenas abulia.
Não
chega sermos diacrónicos, num certo
sentido de Strawson. Temos de acrescentar-lhe o ético, para que tudo na nossa vida possa ser ligado por um fio onde
estão os dias da nossa existência, mesmo que esse fio incorpore as fraquezas,
os desvios, as memórias, os aborrecimentos, as dores ou as falhas. Um fio, para
que a nossa vida seja uma unidade, na procura da vida boa. A ovelha – ou aquilo
que ela representa - não tem esse fio. Falta-lhe o passado e o futuro éticos.
JdB
* Quinto e último ensaio deste seminário
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